17
de agosto de 2014 | N° 17893
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
Suassuna e
Lessa
Quando Ariano Suassuna faleceu, semanas atrás, logo
me veio à lembrança um gaúcho com história, pensamento e obra em tudo similar à
dele: Luiz Carlos Barbosa Lessa. Não faltou quem elevasse o autor do Auto da
Compadecida (1955) a alturas celestiais, mas me parece que estamos devendo
análise e reconhecimento ao valor de obras como a canção Negrinho do Pastoreio
(1949).
Alguém
poderá dizer que a conhecida toada é muito simples, e é – mas só o é porque
Lessa a compôs do modo como a compôs, encontrando o jeito mais natural de
enlaçar seu tempo com o passado, tendo como fio a talvez única lenda originária
do Rio Grande do Sul, que recebeu a versão superior de Simões Lopes Neto.
Aqui
no Estado, os colonizadores brancos tiveram menos de metade do tempo que
experimentaram no nordeste brasileiro, o que significa que Suassuna trabalhou
sobre um manancial muitíssimo mais amplo, que além disso mergulhava raízes na
Idade Média ibérica sem problemas, enquanto para Lessa havia, além de escassos
200 anos de presença lusa aqui, o manancial local, indígena, a que ele soube
prestar atenção e de que soube tirar matéria para obra de grande interesse,
como A Era de Aré.
Suassuna
nasceu em 1927, Lessa em 1929. Os dois em famílias proprietárias, Suassuna como
parte da elite política de seu pequeno Estado, a Paraíba. Os dois migram para
centros maiores, Suassuna para o Recife, Lessa para Porto Alegre. Ambos se
formam em Direito, o nordestino em 1950, o gaúcho dois anos depois.
Pela
mesma época de suas vidas e da história brasileira – o imediato pós-II Guerra,
em que o Brasil viveu uma intensa norte-americanização nas artes, no
entretenimento, nos costumes –, os dois realizaram ações culturais de grande
futuro: Suassuna escrevendo teatro com base na tradição popular ibérica, já
temperada pela vivência cotidiana e pelo imaginário oriundo das amplas
extensões do latifúndio nordestino, Lessa também escrevendo teatro, ficção,
ensaio e canção, este outro gênero de comunicação direta com gente letrada e
iletrada, tendo também tipos populares no centro, camponeses desarraigados no
novo mundo.
Profissionalmente,
caminhos diferentes: enquanto Suassuna tornou-se professor universitário de
Estética, Lessa militou no mundo da propaganda – viveu duas décadas em São
Paulo, a meca econômica brasileira, exatamente no tempo da grande arrancada industrial,
de meados dos anos 1950 em diante. Mas ao mesmo tempo desenvolveu uma
importante carreira no mundo da arte e do entretenimento, acompanhando a Era
dos Festivais e produzindo trabalhos com artistas de sua família estética, como
Inezita Barroso.
Mais
impressionante ainda é o fato de os dois terem protagonizado movimentos
culturais articulados – Suassuna no Armorial, gestado no auge da ditadura
militar, quando ocupava cargo de destaque em governos de situação, Lessa no
Tradicionalismo (também ele teve cargo público de confiança, mas no final do
ciclo militar).
Ideólogos
e artistas, os dois usaram seu talento e seu empreendedorismo para fazer
acontecer o que acreditavam dever existir: uma cultura autêntica, de matriz
popular. Uma cultura (digo eu) que não devesse nada ao mundo da mercadoria, que
é o mundo do pop; uma cultura infensa aos modismos, especialmente os
norte-americanos; uma cultura a garantir permanência, num tempo de permanente
mudança.
Era
uma utopia, em parte regressiva mas de grande apelo, que ainda tem eco e nos
cabe avaliar.
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