23
de agosto de 2014 | N° 17900
PALAVRA
DE MÉDICO | J. J. Camargo
O ESQUECIMENTO QUE NOS
PROTEGE
Foi uma surpresa desagradável, como é a maioria das
surpresas. De braços abertos oferecidos, ela bloqueava a saída dos espectadores
na porta do teatro, e com uma declaração desconcertante: “Obrigada, doutor, por
eu estar aqui, vivíssima, graças ao teu talento de cirurgião. Nunca vou
esquecer a tua confiança quando me disseste: se não curares deste tumor, eu
rasgarei meu diploma!”.
A
previsível reação dos circundantes incluía olhares divididos entre os ingênuos,
plenos de admiração por tanta competência, e os mais perspicazes, extravasando
repúdio pelo modelo de presunção e arrogância.
Eu
lembrava perfeitamente dela, da complexidade do seu caso e do esforço que
fizera à época para manter o otimismo e a esperança, apesar da possibilidade
real de recidiva da doença, nunca omitida.
Mas
de onde ela retirou essa frase exemplar de soberba desmedida? Logo eu, que
sempre debochei de um antigo mestre que encerrava as discussões de casos
clínicos complexos justo com aquela ameaça, tantas vezes repetida, que
ironizávamos dizendo que ele devia ter uma máquina de fotocópia em casa (aos
mais jovens, essa era uma engenhoca que copiava documentos e que antecedeu o
xerox que, enfim, também foi substituído pelo..., bom, não interessa, ela
copiava!).
A
propósito, é comum que as experiências médicas sejam tão glamorizadas pelos
pacientes que as contam e recontam tantas vezes que, depois de um tempo, não
têm nada a ver com o que de fato aconteceu, restando apenas a lembrança do
agradável.
O
nosso maravilhoso Ivan Izquierdo ensinou no seu imperdível A Arte de Esquecer
que é necessário que apaguemos da consciência determinadas lembranças para a
preservação do nosso bem-estar.
Sabe-se
que a memória é uma intrigante faculdade mental que permite registrar,
armazenar e manipular as informações colhidas por meio de vivências, que são
captadas por nossos órgãos dos sentidos.
O
mais fantástico do sistema é que ele, na sua forma ideal, nos protege tanto com
o armazenamento de memórias boas quanto com o esquecimento das indesejáveis.
Porque,
de fato, é saudável esquecer ou pelo menos manter longe na memória, numa
espécie de arquivo morto, aquelas lembranças constrangedoras, como experiências
de medo, humilhação e covardia.
Para
tocar a vida e ir adiante, o cérebro possui um mecanismo de proteção: ele pode
inibir determinadas memórias ou deixá-las praticamente inacessíveis, por meio
de um fenômeno que os psicanalistas chamam de repressão. E isso ocorre o tempo
todo, mesmo sem nossa vontade ou consciência. Memórias perturbadoras podem
emergir a qualquer momento sob a formas de sintomas variados em pessoas que não
sabem explicar por que fizeram o que fizeram, nem tampouco o que sentiram ao
fazer.
Mas
quando essas memórias desagradáveis são acessadas e processadas, elas se
transformam em autoconhecimento e aprendizado, esta que é a deliciosa e
desafiadora tarefa dos terapeutas do psiquismo.
O
convívio diário com pacientes oncológicos é um inesgotável exercício de negação
e de esperança e, conscientes ou não, temos de admitir que essa estratégia
flexível e generosa pode ser um pré-requisito para a nossa sobrevivência.
Quando
Iracema voltou ao consultório um tempo depois, não resisti lhe perguntar: “Tens
certeza que fiz aquela promessa ridícula de rasgar o diploma?”.
Ela
pensou um tempo e concluiu: “Agora que perguntaste, fiquei em dúvida. Mas se
não disseste, devias ter dito. Eu teria sofrido menos!”.
Como
questionar a sabedoria da maravilhosa blindagem cerebral?
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