quarta-feira, 20 de agosto de 2014


20 de agosto de 2014 | N° 17896
PEDRO GONZAGA

MATÉRIA DISTINTA

Enquanto volto de Frederico Westphalen, depois de mais uma participação no excelente Sesc Mais Leitura, que leva autores e professores pelo Estado para falar aos alunos da rede pública, ocorrem-me duas coisas óbvias, que não temo, li bastante Nelson Rodrigues para saber que nunca se dá o devido valor às obviedades: a primeira está na alegria com que os alunos e os educadores recebem essas visitas, esquecidos há décadas por Estados e municípios que falham em lhes oferecer alternativas.

Mas sobre isso não quero falar, não até a duplicação imediata do rendimento dos professores (e depois os treinamentos e não sei quantas miríades de soluções). A segunda obviedade, e esta se me abate a cada vez que pego a estrada (e aqui a crônica), tem a ver com a matéria distinta de que tinham de ser feitos os homens e as mulheres que abriram esses longos caminhos antes de nós.

Não podiam ter ciáticos, formigamentos, estômagos delicados, dramas vitais acionados à mera perda de uma rede de dados. Penso em meu avô, pai do meu pai, capaz de arrancar o sustento de sua família de uma pedreira, carregando um caminhão praticamente sozinho, viagem atrás de viagem. Penso em meu outro avô, na habilidade e paciência de minha avó a seu lado, para organizar e administrar três crianças até Iraí a bordo de um fusca.

Hoje reclamamos do ar-condicionado, se o banheiro tem cheiro, se o ônibus atrasa. Ao primeiro transtorno, postamos um “sentindo-se vítima de um martírio”. Mas e aqueles colonos que abriram picada a picada as rotas da Serra? Do que reclamavam? Maldiziam a Deus, é certo, mas e além disso?

Assim, sinto informar aos bombados que hoje vivem de whey, mas vocês são todos macios, a mendigar aprovações para seus selfies, incapazes de enrijecer as fibras que de fato importam, convertendo desilusões triviais em dramas de cinco atos. Se vocês ainda têm os retratos de família, reparem nos rostos dos antepassados, desconfortáveis e sérios e um pouco assustados. A confiança que exalamos em nossas fotos eles deviam suar na vida.


E eu que já estava prestes a postar “mais 120 quilômetros” com aquele ícone de boquinha triste, paro ao ver surgir meu bisavô – o brilho morto de seu olho de vidro –, passageiro ao meu lado. Quero lhe perguntar como suportou as viagens, como foi capaz de cruzar a vida, mas emudeço. Escrevo a crônica, nada posto. E só então descubro o que os fazia sorrir.

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