28
de agosto de 2014 | N° 17905
L.F.
VERISSIMO
O suicida de pijama
Até os
quatro ou cinco anos de idade, eu fazia xixi na cama. Eu sei que você poderia
muito bem viver sem esta informação, mas eu queria contar a lembrança mais
remota que tenho da minha infância. Eu no banheiro, antes de dormir, com meu
pai ao meu lado tentando me inspirar a fazer xixi na privada para não fazer
depois, na cama.
– Vamos,
meu filho. Eu nada. – Pelo Brasil! Nada. – Pelo dr. Getúlio, meu filho!
Mas
o xixi não saía, nem pela pátria nem pelo presidente.
O
Getúlio Vargas não tinha nenhum poder sobre a minha diurese, mas mandava em
todo o resto, no país. Estávamos em pleno Estado Novo. Um pouco depois, meu pai
aceitou um convite para lecionar literatura brasileira na Universidade da Califórnia
durante dois anos, em parte para fugir da ditadura de Vargas e seu departamento
de censura e propaganda, o famigerado DIP. Nossa volta dos Estados Unidos em 45
coincidiu com o fim do Estado Novo e a queda de Vargas – que cinco anos depois
voltaria à Presidência, eleito.
A
volta de Vargas em 1951 foi um caso raro de ditador que retoma legalmente o
poder, de certa forma legitimando retroativamente o seu governo de exceção. Mas
o Getúlio foi uma caso raro em todos os sentido. Surpreendia que tantas
contradições coubessem numa figura tão pequena. Foi um produto da oligarquia
rural responsável pela legislação social mais avançada da sua época e líder de
um Estado filofascista na origem que se aliou rapidamente à guerra ao fascismo.
Nada
representa suas contradições, ou a sua esperteza política, melhor do que o que
se dizia dele durante seu apogeu, que era o pai dos pobres e a mãe dos ricos. Também
podia agradar à esquerda e à direita ao mesmo tempo. A campanha para a sua
volta do exílio foi feita em cima de uma marchinha nostálgica que pedia para
botarem o retrato do baixinho na parede outra vez. O fim do Estado Novo tinha
deixado um branco insuportável nas paredes da nação. Um nicho sem ídolo.
Sempre
me intrigou o fato de o Getúlio ter vestido um pijama para se matar. Não era
exatamente um traje adequado para deixar a vida e entrar na História tão
dramaticamente. Talvez fosse apenas outra contradição: um símbolo de cálida
domesticidade e velhos hábitos prestes a ser furado por uma bala no coração. Vá
entender.
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