sábado, 9 de agosto de 2014


09 de agosto de 2014 | N° 17885
NÍLSON SOUZA

PEDÁGIOS URBANOS

O homem do primeiro semáforo era mirrado, maltratado e carregava um livro seboso numa das mãos. Caminhava manquitolando entre os carros que aguardavam o sinal verde. Olhou-me através do para-brisa e fez a mímica da fome, balançando os dedos da mão livre na direção da boca aberta. Olhei para uma moeda de R$ 0,50 no console do carro, mas esbocei uma recusa automática, pois a gente nunca sabe se está ajudando ou prejudicando quando oferece dinheiro. Lembrei, então, que carregava dois pães de queijo para o lanche da tarde.

– Queres isso? – perguntei, cauteloso.

Ele aproximou-se da janela, pegou o pequeno pacote e me lançou um olhar messiânico, falando com voz grave:

– Pedi de comer e me deste! Está anotado no livro da vida.

Confesso que fiquei impressionado. Não esperava uma reação daquelas. Quando o sinal abriu, arranquei devagar e fiquei observando pelo retrovisor, para ter certeza de que o sujeito não levitaria.

Algumas quadras adiante, porém, deparei com outra aparição – também fazendo o seu número entre o verde e o vermelho do semáforo. Era um anjo cor de chumbo, uma dessas estátuas vivas que ficam imóveis até ouvir o tilintar de uma moeda na caixinha do assistente. Como vinha de uma experiência meio esotérica, deixei cair os R$ 0,50 no recipiente. Foi o suficiente para a moça abandonar o seu estado de encantamento e saudar-me com uma graciosa mesura.

Segui em frente com a alma leve.

Mas os pedágios desta cidade esburacada são mais numerosos do que os samaritanos eventuais. Na parada seguinte, o rapaz do malabarismo jogou tudo para o ar e aproximou-se sorridente da minha janela. Foi a minha vez de fazer a mímica da negação.

– Não tenho nada para te dar, meu amigo – disse-lhe, com franqueza.

Sua resposta, para minha surpresa, também foi de uma gentileza desconcertante:

– Pelo menos o senhor abriu o vidro para me ouvir. A maioria fecha. Vai com Deus.


Nem sempre ajo assim. Acho que aquele registro no livro da vida mexeu comigo.

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