sábado, 16 de agosto de 2014


17 de agosto de 2014 | N° 17893
ANTONIO PRATA

2001 – Uma odisseia no espaço

Com a minha filha no colo, sentado no chão da sala, leio um livro. “Leio” é maneira de dizer: ela vira as páginas aleatoriamente, vai pousando o indicador nas figuras e eu fico falando “bola”, “avô”, “au au”, “pantufa”, “astronauta”, “isso eu não sei o que é, filhota, parece uma nuvem, mas talvez seja um ovo frito”.

Enquanto “lemos”, bebo uma água, direto da garrafinha. Já acostumado aos pequenos atos de vandalismo a que uma criança de um ano se dedica – basicamente, arremessar ao chão todo e qualquer objeto que consiga agarrar, com o intuito estritamente científico de analisar as consequências físicas e psicossociais do impacto com o solo –, atarraxo a tampa vermelha à garrafa, depois de cada gole.

Não demora para que ela se canse da “bola”, do “avô”, do “au au”, da “pantufa”, do “astronauta” – e do que, desconfio agora, seja uma ovelha voadora – para se vidrar na tampinha. Que coisa incrível, diz seu olhar, uma hora tá na garrafa, outra hora na sua mão, como gruda, como desgruda, posso tentar?

Termino a água num gole e vou tampá-la, mas minha filha é mais rápida: arranca a garrafa da minha mão direita, a tampa da esquerda e engatinha até o meio da sala. Ela olha a tampa, olha a garrafa e olha pra mim, com o mesmo entusiasmo que eu dedicaria a uma final de Copa: vai começar o grande desafio da tampa de rosca.

Ela segura a garrafa na diagonal e tenta encaixar a tampa. A tampa cai: uma, duas, três vezes. Na quarta, ela percebe que há algo errado. Suspira. Coloca a tampa de lado e, com as duas mãos, tenta deixar a garrafa de pé, no chão. Não é fácil. A gravidade é sua inimiga. (Talvez a maior de todas – empatada com a escuridão, à frente do espinafre.)

Cada vez que a garrafa tomba, ela dá um gritinho de ódio, mas não desiste. Até que, lá pela décima quinta tentativa, ela consegue. A garrafa está ali, parada no meio do tapete de sisal como o monolito no deserto, em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Ela me olha. Sabe que o jogo não está ganho, que o mais perigoso vem a seguir, mas não demonstra temor.

Ela pega a tampinha ao seu lado, vai levando em direção à garrafa e tudo, a partir daí, é em câmera lenta. Em algum lugar, toca Assim Falou Zaratustra. A tampa toca a boca da garrafa. A garrafa balança, mas não cai. Dum-dum-dum-dum-dum-dum, reverberam os tímpanos. Ela levanta um pouco a tampa. Tenta de novo. Olha pra mim. Tchanaaam, explodem os metais. Não sei que cara fazer. Não quero pressioná-la para o sucesso nem, com a minha ansiedade, condená-la ao fracasso. (Sutis são os dilemas da paternidade.)


Finalmente, ela solta a tampa. A tampa fica em cima da garrafa. Meio tortinha, não rosqueada, mas fica. Tchanaaaaaam. Ela bate palmas e ri. Eu aplaudo de volta: pequena gênia, futura arquiteta, cientista, Medalha Fields, ouro nas barras paralelas, “olha só o que você conseguiu!”, digo, com os olhos marejados. Penso em guardar a garrafa, em banhá-la em cobre, colocá-la no alto da estante, mas minha filha tem outros planos: com um tapão, lança longe garrafa e tampa, engatinha pra perto de mim e fica batendo o dedinho no livro, aberto sobre o tapete; “bola”, “avô”, “au au”, “pantufa”, “astronauta”, “ovo? Ou será uma ovelha?”.

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