17
de agosto de 2014 | N° 17893
ANTONIO
PRATA
2001 – Uma odisseia no
espaço
Com a minha filha no colo, sentado no chão da sala,
leio um livro. “Leio” é maneira de dizer: ela vira as páginas aleatoriamente,
vai pousando o indicador nas figuras e eu fico falando “bola”, “avô”, “au au”,
“pantufa”, “astronauta”, “isso eu não sei o que é, filhota, parece uma nuvem,
mas talvez seja um ovo frito”.
Enquanto
“lemos”, bebo uma água, direto da garrafinha. Já acostumado aos pequenos atos
de vandalismo a que uma criança de um ano se dedica – basicamente, arremessar
ao chão todo e qualquer objeto que consiga agarrar, com o intuito estritamente
científico de analisar as consequências físicas e psicossociais do impacto com
o solo –, atarraxo a tampa vermelha à garrafa, depois de cada gole.
Não
demora para que ela se canse da “bola”, do “avô”, do “au au”, da “pantufa”, do
“astronauta” – e do que, desconfio agora, seja uma ovelha voadora – para se
vidrar na tampinha. Que coisa incrível, diz seu olhar, uma hora tá na garrafa,
outra hora na sua mão, como gruda, como desgruda, posso tentar?
Termino
a água num gole e vou tampá-la, mas minha filha é mais rápida: arranca a
garrafa da minha mão direita, a tampa da esquerda e engatinha até o meio da
sala. Ela olha a tampa, olha a garrafa e olha pra mim, com o mesmo entusiasmo
que eu dedicaria a uma final de Copa: vai começar o grande desafio da tampa de
rosca.
Ela
segura a garrafa na diagonal e tenta encaixar a tampa. A tampa cai: uma, duas,
três vezes. Na quarta, ela percebe que há algo errado. Suspira. Coloca a tampa
de lado e, com as duas mãos, tenta deixar a garrafa de pé, no chão. Não é
fácil. A gravidade é sua inimiga. (Talvez a maior de todas – empatada com a
escuridão, à frente do espinafre.)
Cada
vez que a garrafa tomba, ela dá um gritinho de ódio, mas não desiste. Até que,
lá pela décima quinta tentativa, ela consegue. A garrafa está ali, parada no
meio do tapete de sisal como o monolito no deserto, em 2001: Uma Odisseia no
Espaço. Ela me olha. Sabe que o jogo não está ganho, que o mais perigoso vem a
seguir, mas não demonstra temor.
Ela
pega a tampinha ao seu lado, vai levando em direção à garrafa e tudo, a partir
daí, é em câmera lenta. Em algum lugar, toca Assim Falou Zaratustra. A tampa
toca a boca da garrafa. A garrafa balança, mas não cai.
Dum-dum-dum-dum-dum-dum, reverberam os tímpanos. Ela levanta um pouco a tampa.
Tenta de novo. Olha pra mim. Tchanaaam, explodem os metais. Não sei que cara
fazer. Não quero pressioná-la para o sucesso nem, com a minha ansiedade,
condená-la ao fracasso. (Sutis são os dilemas da paternidade.)
Finalmente,
ela solta a tampa. A tampa fica em cima da garrafa. Meio tortinha, não
rosqueada, mas fica. Tchanaaaaaam. Ela bate palmas e ri. Eu aplaudo de volta:
pequena gênia, futura arquiteta, cientista, Medalha Fields, ouro nas barras
paralelas, “olha só o que você conseguiu!”, digo, com os olhos marejados. Penso
em guardar a garrafa, em banhá-la em cobre, colocá-la no alto da estante, mas
minha filha tem outros planos: com um tapão, lança longe garrafa e tampa,
engatinha pra perto de mim e fica batendo o dedinho no livro, aberto sobre o
tapete; “bola”, “avô”, “au au”, “pantufa”, “astronauta”, “ovo? Ou será uma
ovelha?”.
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