10
de agosto de 2014 | N° 17886
ANTONIO
PRATA
Ficando para
trás
Ao desfazer a mala percebi, chateado, que um dos pés
da meia verde tinha ficado lá na praia. Àquela hora, devia estar caído atrás do
armário da pousada, quem sabe até já não tivesse virado pano de chão, saquinho
de parafuso, flanela para encerar móveis? Se fosse um casaco, uma calça, uma
gravata, ainda haveria chances de ir parar num Achados e Perdidos, numa gaveta
da recepção, mas um pé de meia? Quem se dá ao trabalho de ligar, perguntar se
por acaso, mas que bom, Sedex tá ótimo, me passa a sua conta que te envio um
DOC? No entanto, como já disse, fiquei chateado.
Aquelas
meias haviam sido compradas na primeira viagem que fiz com a minha mulher,
poucos meses depois de começarmos a namorar. Uma viagem em que cruzamos os
Estados Unidos de carro, sem rumo, parando de cidade em cidade, dormindo em
motéis de beira de estrada e nos descobrindo – descobrindo, por exemplo, que eu
não era o tipo de cara que gosta de cruzar um país de carro, sem rumo, parando
de cidade em cidade, dormindo em motéis de beira de estrada. Meu apego por road
movies, me dei conta, enquanto discutia com a voz do GPS numa highway de oito
pistas em algum lugar do Arizona, tinha mais a ver com “movies” do que com
“road”. (Há uma diferença nada sutil entre assistir à Paris, Texas e estar em
Paris, Texas – a diferença, digamos, entre um deserto e uma poltrona.)
Foi
lá pelo meio da viagem, quando eu estava aflito, espremido entre caminhões
mastodônticos e o possível fim do namoro – ela sempre querendo ver o que havia
do lado de lá da montanha, eu sugerindo tomar uma cerveja na próxima esquina –
que comprei as tais meias, numa cidadezinha em Nevada. Eram grossas,
confortáveis, meias de domingo, daquele velho domingo que “pede cachimbo” na
canção infantil. Apesar de estrangeiras, emanava delas o inconfundível aroma do
lar. Algo sutil, claro: mas não é nas sutilezas que Deus e o Diabo se escondem?
Pois as meias verdes amaciaram um pouco aqueles dias atribulados.
Teve
uma tarde, já no fim da viagem, em que subimos um platô em Monument Valley, no
Arizona. Um cenário de faroeste, digno de John Wayne ou Papa-Léguas, e, embora
– ou talvez exatamente porque – escalar um platô no meio do deserto fosse a
caricatura do que me desagradava no pacote aventura, a epítome do desconforto,
consegui relaxar e aproveitar. Ao chegar lá no alto, suados, tiramos os
sapatos, ficamos em silêncio, um encostado no outro, admirando a paisagem
marciana.
Anos
depois, mesmo tendo lavado dezenas de vezes as meias verdes, uma manchinha da
terra vermelha de Monument Valley resistia, impregnada às suas fibras. Sempre
que abria a gaveta e as via, me voltava à memória aquele momento da viagem, o
momento em que entendi que o namoro, apesar de nossas diferenças – eu,
poltrona; ela, platôs – iria dar certo. E deu.
Agora,
um pé de meia tá lá na Barra do Sahy, passando óleo de peroba na mesa do café
da manhã, o outro irá inexoravelmente pro lixinho do banheiro. Fazer o quê?
Veja, não é pela meia que eu fico triste, não. É a vida que, num detalhezinho
aqui, noutro ali, tão rápido, vai ficando para trás.
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