23
de agosto de 2014 | N° 17900
PAULO
SANT’ANA
Sobreviveu à
tortura
Volto
hoje, como prometi anteontem, a reproduzir o relato da colunista de O Globo
Miriam Leitão ao jornalista Luiz Cláudio Cunha, sobre os horrores que sofreu
durante a ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964.
Meu
propósito é somente o de que nunca mais se reproduza uma ditadura no Brasil.
Continua
Miriam: “Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia
o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu
desaparecimento.
Só
três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema
anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só
conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel,
mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com as outras presas:
Angela, Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.
Fiquei
48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 quilos de peso, saí três meses
depois pesando 39 quilos. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, tinha enormes
chances de perder meu bebê. Foi o que o médico me disse, quando saí de lá, com
quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa,
assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que
uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse,
teria sequelas, me disse o médico.
– A
má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que
fazer para aumentar as chances do meu filho.
Mas
isso foi ao sair. Lá dentro, achei que não havia chance alguma para nós. Eu era
levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde
passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos,
para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a
madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois
berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar.
Um
dia, achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para
onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e
me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um
fuzilamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de
um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada
cercada de cães e fuzis, e pensei: ‘Eu sou muito nova para morrer. Quero
viver’”.
“Numa
noite, numa sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me
alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a
deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do
estupro, divertindo-se com tudo aquilo.
Eu
estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a
revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro.
Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca
incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando
pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente
era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha
cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da
coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra
que enlouquecia a cachorrada: ‘Terrorista, terrorista!’.”
“Sobrevivi
e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela.
Ele me deu duas netas, Manuela (três anos) e Isabel (um). Do meu filho caçula,
Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu
maior patrimônio.
Minha
vingança foi sobreviver.”
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