sábado, 23 de agosto de 2014

23 de agosto de 2014 | N° 17900
CLÁUDIA LAITANO

Irreversível

Uma história brutal, narrada do fim para o começo. No início, vemos um homem esmagar a cabeça de outro com um extintor de incêndio. Algumas sequências depois, mais violência: uma mulher é estuprada em uma passagem subterrânea de metrô. Mais adiante, ficamos sabendo que o homem massacrado da primeira cena é o estuprador, e que o assassino é o marido da vítima.

A história termina com uma cena quase bucólica de paz e tranquilidade, cronologicamente anterior aos terríveis episódios narrados no filme. O cinema concretiza o que na vida é apenas uma fantasia: inverte a lógica do tempo e dá pause em um instante de felicidade. O efeito no espectador, porém, é exatamente oposto ao do apaziguamento.

Não recomendo Irreversível (2002), do diretor franco-argentino Gaspar Noé, para ninguém que tenha por hábito evitar cenas de brutalidade explícita na arte como na vida, mas é preciso reconhecer que esse filme desconfortável e quase desmedido em sua exibição crua da violência é capaz de mobilizar no espectador a compreensão aproximada do que seja um estupro. São 10 minutos praticamente intoleráveis no cinema, em que a agressão é despida de qualquer elemento que atenue a tortura física e psicológica que está em curso.

O que chama a atenção no caso do médico Roger Abdelmassih, quase tanto quanto a facilidade com que escapou da lei até agora – o que infelizmente não chega a ser surpreendente levando-se em conta sua classe social – é o fato de suas vítimas serem mulheres de classe média e classe média alta, como ele – ou seja, com todas as condições para contratarem bons advogados e denunciarem os crimes.

Nem isso, porém, intimidou o médico, tão grande era a sua arrogância e tão respaldado ele se sentia pela profissão, pela classe social, pelo sexo e pelo tipo de crime que cometia – o tipo que faz vítimas terem vergonha de falar e autoridades terem dificuldade para ouvir.

O que nos leva a imaginar o cenário terrível de um crime parecido que tivesse como vítimas mulheres pobres, de periferia, envergonhadas, sem acesso à justiça ou à informação. Quanto tempo levaria para elas serem ouvidas? Quantos estupros pareceriam estupros demais até que alguém fosse punido?

Uma das funções do sistema penal é evitar que as vítimas tenham ganas de sair por aí esmagando a cabeça de quem cometeu um crime contra elas. É preciso punir os criminosos, portanto, não apenas para tirar o malfeitor de circulação, evitando que cometa outras infrações, mas também para dar uma satisfação às vítimas e, principalmente, para desencorajar que outros crimes aconteçam pela sensação de impunidade.


A história pessoal de quem sofreu uma violência é irreversível, e a Justiça é o único alento possível para as vítimas. Mas não apenas para elas. Porque quando um criminoso não é punido ou sua punição parece desproporcionalmente branda ou lenta, a violência, no fim das contas, é contra todos nós.

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