sexta-feira, 22 de agosto de 2014


22 de agosto de 2014 | N° 17899
DAVID COIMBRA

Dilma, Míriam e Roger

Deu-se no começo desta semana. Primeiro, li o assustador relato da jornalista Míriam Leitão sobre como foi torturada num quartel do Exército nos anos 70. Com 19 anos de idade, grávida, ela passou três meses sendo supliciada. Certo dia, trancaram-na numa sala totalmente escura, na companhia de uma serpente. Míriam ficou horas de pé, nua, tremendo de horror, sem saber onde rastejava a cobra, com medo de atraí-la com o movimento.

Poucos minutos depois de ler essa história cruenta, caiu-me diante dos olhos uma inacreditável discussão virtual entre o escritor Marcelo Rubens Paiva e o músico Roger Moreira. Marcelo, além de autor do bom livro Feliz Ano Velho, é filho do deputado Rubens Paiva, que foi torturado até a morte num dos porões da repressão, também nos anos 70. A folhas tantas do bate-boca pela internet, Roger disse que sua família não sofreu durante a ditadura “porque não fez merda”.

Fiquei um pouco nauseado com a frase, mas depois ponderei: as redes sociais são mesmo perigosas, as pessoas discutem como se estivessem em mesa de bar, só que não estão em mesa de bar, estão lidando com a palavra escrita. Quer dizer: com documentos. Além do mais, Roger faz oposição ao PT, o que o leva a cometer uma confusão que cometem muitos outros opositores: eles identificam o PT com tudo o que é vagamente comunista e libertário, e aí atacam tudo o que é vagamente comunista e libertário, a fim de atacar o PT.

Uma bobagem. O PT não é comunista nem libertário. É outra coisa, que não cabe aqui analisar. Já na questão da luta contra a ditadura, que cabe, nisso o PT não teve nenhuma participação. O PT foi fundado quando a redemocratização já estava bem encaminhada. Nem a presidente da República, que, ela sim, pegou em armas para enfrentar a ditadura, nem ela era do PT. Dilma é petista de última hora, tendo sido arrancada não faz muito das fileiras brizolistas. A geleca que é o PMDB, por absurdo que pareça, tem bem mais a ver com a luta contra a ditadura do que o PT.

Então, suponho que Roger deva ter se arrependido das tolices que disse. Mas, no passar das horas, li que grupos de brasileiros pretendiam se manifestar pela volta dos militares ao poder. Será que se manifestaram? Não é possível... Em todo caso, talvez sejam como Roger: querem mudança, e não sabem qual.

Confesso que tudo isso me proporcionou certo desalento com os rumos do Brasil. Até que assisti à entrevista de Dilma no Jornal Nacional. Já sei de toda a repercussão que rendeu, acompanhei o debate feroz. Só que nada disso realmente importa. O que importa é que, naquela noite, em rede nacional de TV, um jornalista questionou duramente um presidente da República.

A presidente que, nos anos 70, foi torturada como o foram Míriam Leitão e Rubens Paiva, essa presidente agora se sentava em frente a um jornalista e ouvia perguntas incisivas, rascantes e desconfortáveis. E Dilma não se comportou como se comportariam seus algozes. Não. Dilma pode não ter respondido a algumas questões até essenciais, mas nunca usou sua autoridade para tentar descompor ou debochar do entrevistador.

Dilma foi uma democrata. E ali, naquele momento, a democracia era exercida. Ali, naquela noite, no Jornal Nacional, a democracia brasileira alcançava sua plenitude. A imprensa fazia o seu papel de cobrança severa do poder constituído, e o poder constituído, na pessoa de um presidente da República, compreendia que o presidente não é senão o primeiro servidor da nação. E dava satisfações à nação.


A entrevista do Jornal Nacional foi um bálsamo. Não interessam os impulsos bolivarianos de setores do governo, não interessam as manifestações obtusas dos saudosos da ditadura, o Brasil é uma democracia. E aqui, às margens do Atlântico Norte, a 10 mil quilômetros de distância, me senti feliz por ser brasileiro.

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