segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008



04 de fevereiro de 2008
N° 15500 - Luis Fernando Verissimo

Evocação


Certas coisas são mais importantes pelo que evocam do que pelo que são. Têm um significado simbólico que às vezes suplanta a realidade.

Agora mesmo no Rio Grande do Sul discute-se um projeto de pesquisa neurológica entre detentos de menor idade para estudar as causas da criminalidade e do comportamento agressivo, e a reação à idéia tem sido forte.

Estudos desse tipo, segundo seus críticos, buscam argumentos para os que propõem razões biológicas e genéticas, ao contrário de culturais e sociais, para a criminalidade, e eximem a sociedade da sua culpa.

Os defensores do projeto alegam que avanços havidos na investigação neurológica, da base puramente biológica do comportamento anômalo, tornaram obsoleta a velha questão natureza x cultura que dividia - grosseiramente entre direita e esquerda - os psicólogos e os analistas sociais.

E que uma maior compreensão do funcionamento de um cérebro criminoso não exclui a influência do meio na sua existência.

O outro lado defende que pesquisas assim já partem do pressuposto de que o social não importa e só querem camuflar seu reacionarismo - no fundo quase uma volta a teorias criminalísticas do século 19 - com pseudo-rigor científico. Reacionários são vocês, que não aceitam o progresso da ciência por preconceito político, dizem os outros. Enfim, uma boa briga.

Mas o que informa, e talvez distorça, o debate mais do que tudo é que nada que se faça ou discuta nessa área deixa de evocar as experiências nazistas com a eugenia. Pode ser injusto mas o fato da pesquisa gaúcha proposta ser com detentos, e seu fim, não declarado mas implícito, ser a "cura" individual do desvio de conduta pela intervenção biológica ou química, reforça a evocação incômoda.

Ninguém gosta de lembrar que a monstruosa experimentação dos nazistas em cobaias humanas foi predecessora direta do que viria a ser o mais revolucionário ramo da especulação científica do pós-guerra, o da manipulação genética, que abre a possibilidade da espécie humana premeditar a prole, ou programar sua progenitura - e, supostamente, seu caráter e sua índole, além de sua saúde - a partir de uma célula.

Mas mais de 60 anos depois do fim da II Guerra Mundial, todas as experiências cujo objetivo é procurar no corpo e nos genes as causas da imperfeição humana e na transformação da sua natureza a solução, ainda têm que conviver com a memória dos horrores nazistas. Merecendo ou não, a evocação é inescapável.

Que lado do debate tem razão? Felizmente eu não preciso decidir. A política é sempre má palpiteira em assuntos de ciência, mas a ciência arregimentada para provar preceitos políticos é pior.

E acho bom que perdure por muitos mais anos na memória do mundo o que aconteceu na Alemanha nazista, quando uma presunção de neutralidade moral levou a ciência a romper todos os limites da humanidade.

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