sábado, 16 de fevereiro de 2008



16 de fevereiro de 2008 | N° 15512
O Prazer das Palavras | Cláudio Moreno


Oriente

A prática nos ensina, desde pequenos, que a semelhança entre duas palavras raramente é simples coincidência.

É quase impossível, ao compararmos dízimo e dizimar, por exemplo, não suspeitar que sejam palavras da mesma família, pois todo mundo pode ver que a cara de uma é o focinho da outra - mas onde está a ligação secreta entre elas, onde está o traço comum, o DNA semântico que nos assegura de que não estamos imaginando um parentesco inexistente?

Que fio invisível poderia ligar dízimo, que é "a décima parte recolhida como imposto ou oferecida como contribuição religiosa", a dizimar, que significa "exterminar, aniquilar, massacrar"?

O desbravador desses tortuosos caminhos subterrâneos que ligam as palavras entre si é o etimologista; se ele for estudioso e competente, avançará tateando com cuidado pelos escuros corredores até encontrar a saída.

Na verdade, recuará, pois esse tipo de resposta que procuramos sempre vai nos levar ao passado da nossa língua e de toda nossa cultura - o que, no caso de dizimar, vai nos levar à Roma dos Césares.

Os romanos chamavam de decimatio um método extremo para controlar os motins que de vez em quando estouravam em suas legiões: os revoltosos eram divididos em grupos de dez, independentemente de seu posto, e de cada grupo, por sorteio, era escolhido um infeliz para ser sumariamente executado.

Situações menos graves (ou comandantes mais brandos) levavam às vezes à vicesimatio (um de cada vinte) ou até à centesimatio (um de cada cem). Como se pode imaginar, essa prática medonha acalmava instantaneamente os soldados amotinados - bem, pelo menos os nove décimos restantes ficavam muito quietos.

A partir da Idade Média, no entanto, o verbo dizimar (ou decimar) perdeu aquela antiga referência à base numérica dez e ganhou o seu significado atual, que é o de "aniquilar, devastar, matar um grande número de pessoas".

Outro par de vocábulos cuja ligação foi esquecida pela memória do idioma é o formado por oriente e orientar. Na Antigüidade, mesmo os homens mais sábios defendiam a teoria de que a Terra era imóvel e de que o Sol girava a seu redor.

Não podemos criticá-los; afinal, todos os dias eles o viam nascer no mesmo lugar, passar por sobre suas cabeças e desaparecer, à noitinha, no lado oposto do céu.

Essa crença antiga, que perdurou por milênios, até que Copérnico e Galileu, no século 16, entendessem a verdadeira estrutura do sistema solar, deixou sua marca nos vocábulos que usamos até hoje para referir nossa posição no planeta.

A palavra Ocidente, que usamos para indicar o Oeste, o lado onde o Sol se põe, vem da expressão latina sol occidens - literalmente, "sol que tomba", derivado de occidere, "tombar, derrubar" (de onde vem, é evidente, a forma ocaso).

Na direção oposta fica o Oriente, o Leste, o lugar onde nasce o Sol, de sol oriens, "sol nascente" - do Latim oriri, "erguer-se, nascer", irmão, portanto, de origem e de aborto (ab ortus, "não-nascido, malparido").

Enquanto o Ocidente está ligado à escuridão e ao declínio - e é significativo que era no Oeste que os gregos situavam o mundo subterrâneo de Hades, o deus dos mortos, o Oriente sempre esteve associado à vida, talvez exatamente por ser o lugar de onde vem a luz - o que explica por que o Velho Testamento (Gênese, 2.8) nele situa o jardim do Éden.

Por isso o verbo orientar nasceu do hábito de posicionar um edifício ou um templo na direção de algum importante ponto cósmico ou religioso.

Na China, na Grécia e em Roma, as construções geralmente estavam direcionadas para o Nascente - ou o Levante, "o ponto onde o Sol se eleva", denominação um pouco imprecisa, mas ainda usada genericamente para designar os países da costa mediterrânea da Ásia (principalmente a Turquia, o Líbano, a Síria e Israel).

Nas igrejas e catedrais cristãs, sempre se procurou manter o princípio de voltar a porta do edifício para o lado do poente, de modo a permitir que os fiéis, voltados para o lado oposto, onde fica o altar, dirijam suas preces em direção ao nascente.

Quando o arruamento das aglomerações urbanas se tornou mais complexo, nem sempre foi possível erigir os templos dentro desse eixo simbólico Oeste-Leste.

Isso propiciou o surgimento (eu ia escrever "propiciou a ereção", que é o substantivo que corresponde ao verbo erigir, mas...), ao lado das igrejas orientadas, de um número razoável de igrejas desorientadas.

Este termo passou também a designar, por metáfora, um estado mental de confusão e incerteza - "Ela ficou desorientada" - , que ganhou, com a invenção e popularização da bússola, que sempre aponta para o Norte, uma séria concorrência por parte do vocábulo desnorteada.

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