sábado, 16 de fevereiro de 2008



17 de fevereiro de 2008
N° 15513 - Luis Fernando Verissimo


O boteco sabia

Já que nenhum julgamento definitivo é possível e nenhum palpite sobre quem era e quem não era o Bom Mesmo pode ser provado, esta é uma conversa sem fim

Escolhido para ser o técnico da Seleção Brasileira que disputaria a Copa do Mundo no México em 70, João Saldanha convocou a imprensa e anunciou o time. Não quem seria convocado, não quem seria experimentado. O time. Os 11. Estava apenas repetindo, oficialmente, o que diria numa mesa de bar se lhe pedissem a sua Seleção.

Outros, na hipotética mesa, escolheriam outras Seleções, mas ninguém hesitaria. Todos teriam um nome para cada posição, e uma Seleção pronta. A do Saldanha só ficou na história porque, com a mesma naturalidade com que a anunciava no bar, anunciou para o mundo, como técnico.

Dando inveja, claro, a todos os outros escaladores de boteco do país, que tinham a sua Seleção óbvia mas não tinham o poder de convocá-la.

Muitos mitos da Seleção de 70 não resistiram ao tempo. Ou foram desmentidos, ou foram convenientemente esquecidos. Saldanha disse ou não disse que cortaria o Pelé da lista porque o Pelé era míope?

Largou a Seleção porque os militares no poder, a começar pelo presidente Médici, estavam se intrometendo demais no seu trabalho, ou não foi bem assim?

Não importa. O que deixou mais saudades - porque nunca tinha acontecido antes e nunca mais se repetiu - foi a simples anunciação, como primeiro ato da sua regência, do time que ele tinha na cabeça, do goleiro ao ponta-esquerda.

O time que acabou ganhando no México não foi o do Saldanha, foi o do Zagalo, mas isso também não interessa. É que, entre o boteco e o fato, entraram as circunstâncias, essas serpentinas em que a gente vive se enredando.

Hoje não existe mais a escalação espontânea. Porque a escalação de boteco nunca foi tão mal informada. O futebol mudou no campo (nem ponta-esquerda existe mais) e fora dele.

Ninguém consegue acompanhar o que os jogadores brasileiros fazem no Exterior para merecer a Seleção. Em alguns casos, são jogadores que saíram daqui desconhecidos e só se destacaram lá fora, ou só são conhecidos por quem acompanha, por exemplo, o futebol turco.

Não são mais da nossa vizinhança. O Brasil de 70, com Médici e tudo, era um pouco mais íntimo. E na falta do time mais ou menos óbvio, na falta do time do boteco, o que se vê é isso: uma Seleção em constante experimentação, com um elenco para cada ensaio.

Não se deve valorizar demais a sabedoria popular no futebol. Muitas vezes os favoritos do público não convêm à Seleção, e há muitos exemplos de implicâncias do público que deram certo. Mas a escalação do boteco valia pelo menos como uma referência. Bem ou mal, o boteco sabia. Hoje o boteco nem desconfia.

O bom mesmo

Faz parte do folclore do futebol brasileiro, e da conversa de boteco, a figura do “Bom Mesmo”, como na frase “Vocês ficam aí falando no Pelé, mas bom mesmo era...”. E vem o nome de algum contemporâneo do Pelé que só não teve a mesma fama por uma dessas injustiças da vida.

Geralmente quem invoca o Bom Mesmo quer mostrar que tem uma percepção mais rarefeita do futebol do que os outros, ou apenas melhor memória. Velhos torcedores do Vasco da Gama garantem que o maior craque que já passou pelo time foi um chamado Ipojucan, que não teve o reconhecimento e a posteridade que merecia.

E há quem insista que o grande jogador brasileiro da época em que o mais festejado era o Pelé, o Bom Mesmo, era o mineiro Dirceu Lopes – que seria outro injustiçado pelo tempo. Já que nenhum julgamento definitivo é possível e nenhum palpite sobre quem era e quem não era o Bom Mesmo pode ser provado, esta é uma conversa sem fim. Como todas as boas conversas de boteco.

Seleção X Seleção

Outra especulação inútil, mas irresistível, é: qual seria o resultado do encontro entre Seleções Brasileiras de diferentes épocas? Muita gente opina que os dois melhores times do Brasil de todos os tempos foram justamente os das nossas duas derrotas mais inesquecíveis, a Seleção de 50 e a de 82.

Há dias, para o seu blog, o Juca Kfouri pediu a diversos palpiteiros que imaginassem jogos entre os times brasileiros de todas as Copas, e me coube um jogo de vencedores: Brasil de 58 x Brasil de 70. Acho que o Juca não se importará se eu plagiar minha resposta.

“Um jogo da Seleção de 58 com a Seleção de 70 seria um encontro de Pelés, o Pelé com 17 anos e o Pelé com quase 30. Um Pelé começando e um Pelé experiente. Fora os dois, time por time, sei não.

Uma comparação jogador a jogador não seria fácil, fora obviedades como o Nilton Santos comparado com o Everaldo. Já a superioridade do Garrincha sobre o Jairzinho, levando-se em conta o que o Jairzinho jogou no México, não seria tão grande assim, mesmo o Garrincha sendo incomparável.

Em outros casos, nem caberia comparação. Vavá e Tostão? Era como se jogassem esportes diferentes. Rivelino não era um utilitário como o Zagalo, mas tinha os recursos do drible curto e do chute forte.

Não havia equivalente ao Clodoaldo, ou alguém com as funções do Clodoaldo, na seleção de 58. Enfim, quem ganharia? Acho que o jogo seria decidido por um dos dois Pelés. Eu apostaria no Pelé maduro.”

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