sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008



DIÁLOGO ENTRE UM BARBEIRO E UM SEM-TERRA

Repórter sempre em busca da notícia, ainda que afastado dessa função há alguns anos, espichei o ouvido para captar um diálogo deveras interessante entre um barbeiro – o transmissor da doença de Chagas, não o responsável pelas agências noticiosas dos vilarejos – e um sem-terra.

É incrível como se pode colher bom material numa viagem de férias. A tal conversa aconteceu no canto de uma dessas casinhas de barro de um assentamento.

Peço que acompanhem com atenção e não se deixem dominar por convicções ideológicas antes do tempo. É bem verdade que o barbeiro poderá parecer terrivelmente reacionário. Mas o sem-terra, alguma vezes, excedeu-se no radicalismo. Julguem por vocês mesmos ao final desta história real.

O barbeiro acusou o sem-terra de nada entender de agricultura e de ter participado da invasão apenas para receber uns hectares que pudesse vender na primeira oportunidade.

O sem-terra defendeu-se alegando que fora uma ocupação e apontando para o rancho: 'Isto é casa para se viver?' O barbeiro, ofendido, balbuciou: 'Estou bem aqui. Sinto-me no meu hábitat natural'.

O sem-terra, apesar de não ter certeza quanto à precisão do termo, contra-atacou: 'Ora, você não passa de um parasita'. O barbeiro acusou o golpe: 'Eu não vivo do Bolsa-Família nem de outras ajudas do governo federal'.

O sem-terra riu. Afinal, o golpe era baixo demais. A conversa estava tomando um rumo desagradável, rasteiro, baixo nível, semelhante ao de certos debates de televisão.

Não tendo outro argumento, no entanto, usou o previsível: 'De quem é o sangue?' O barbeiro desconversou: 'Quem manda não ser desenvolvido. Doença de Chagas é coisa de primitivo'.

Aturdido, o sem-terra limitou-se a exclamar: 'Cínico!' Realista, corrigiu o barbeiro. O sem-terra reclamou da falta de condições de trabalho e acusou o barbeiro de ter votado em FHC e de ser um eterno collorido.

'Precisamos de uma revolução', exaltou-se. 'Devemos dar a terra para quem nela produz', completou. O barbeiro continuou impassível': 'Você não produz'.

O sem-terra perdeu as estribeiras: 'Vou acabar com você'. O barbeiro permitiu-se uma ironia: 'Era o mínimo que você devia fazer'. Sejamos francos, eu já estava indignado com a canalhice do barbeiro e revoltado com a tibieza do sem-terra.

É indescritível o quanto um barbeiro pode ser desumano e frio. Se não fosse uma imagem demagógica ou simplória, eu diria que aquele bicho tinha alma de banqueiro, tamanha era a sua insensibilidade social.

Foi aí que aconteceu, digamos assim, uma virada. O barbeiro adotou uma voz mais suave e conciliadora: 'Se falo isso é pelo seu bem, meu velho. Não suporto mais ver a sua família vivendo no limite da linha da pobreza'.

O barbeiro adotava agora um tom e um vocabulário mais ou menos sociológicos. O sem-terra ficou um tempo na defensiva. O barbeiro insistiu: 'Você não pode continuar assim, contentando-se com tão pouco, vegetando, vivendo de migalhas'.

Desconfiado dessa conversa mole, o sem-terra retomou o ataque: 'Se aqui é tão ruim assim, meu chapa, por que você não se manda? Por que não vai embora?' O barbeiro deu de ombros com falsa modéstia: 'Cada qual com a sua natureza.

Estou na base aliada. Tudo indica que teremos em breve mais cargos em todos os escalões. Não estamos pedindo favor algum. Só queremos aquilo que nos é de direito. Afinal, sem nós, o país fica ingovernável'.

juremir@correiodopovo.com.br

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