sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008



29 de fevereiro de 2008
N° 15525 - David Coimbra


Noites de contravenção

Cláudio Ends tinha uma Luger. Aquela pistola alemã. É que Cláudio Ends era alemão. Alemão alemão mesmo, não da colônia. Falava português com sotaque: "Tuto pom?"

Não sei como veio parar no Brasil, ele sempre despistava quando roçávamos no assunto. Existia uma crença entre os amigos de que fugira da II Guerra e que aquela Luger fora usada por ele em combates pelo exército do Reich, mas não podia ser - em 1945 Cláudio devia ter uns sete anos.

Enfim, Cláudio Ends atravessou o oceano e, depois de rodar pelo continente, estabeleceu-se em Criciúma. Abriu um restaurante, o Recanto do Fritz, que explodiu em sucesso.

Cláudio Ends até já havia vencido concursos culinários, preparava um lombinho à moda russa que seduziria Sharapovas, um purê de batatas tão diáfano que flutuava e uma torta de maçã que a gente comia aos soluços, o que, combinado aos chopes bem tirados, fez-me engordar 26 quilos, já contei essa.

Mas o importante era o que acontecia às segundas-feiras no restaurante do Cláudio. Ele fechava as portas para o público, chamava-nos, a um grupo de amigos, e patrocinava uma noitada de contravenção - jogávamos pôquer no restaurante do Cláudio!

A dinheiro, obviamente, que pôquer só tem graça se for a dinheiro. Os homens ficávamos reunidos numa saleta, fumando, bebendo e jogando. As mulheres em outra, assistindo TV.

No meio da noite, o jogo era interrompido, os casais voltavam a se formar numa terceira sala e Cláudio servia-nos uma refeição suntuosa - até hoje suspiro ao lembrar de certo rahmschnitzel de quatro dedos de altura... Concluído o jantar, os homens voltávamos para a saleta e o jogo recomeçava feroz, para só terminar na última curva da madrugada.

Muitas segundas-feiras saí daquelas tertúlias com o salário desfalcado, mas também já houve de ter ganho o suficiente para me empanzinar de hackepeters durante toda a semana.

De uma forma ou de outra, o que sempre pensava depois da jogatina era o mesmo: por que o jogo é proibido no Brasil? Afinal, eu jogava, meus amigos jogavam, conheço dezenas de pessoas que jogam, todos adultos, sensatos, cumpridores de seus deveres, pagadores de impostos. Qual é o problema?

Há quem vá à bancarrota em cassinos? O que é que tem? Esses se arruinarão com os cavalos lerdos do hipódromo, com as mariposas das boates escusas, no frêmito da bolsa de valores. E os bingos? Existe maior hipocrisia do que proibir bingos?

Aquelas senhoras septuagenárias que vão aos bingos, alguém pode afirmar que não lhes cabe o direito de dissipar o dinheiro da aposentadoria, se quiserem?

E por que um homem adulto, maduro, que já bebeu as cervejas que poderiam ser bebidas, já beijou as mulheres que poderiam ser beijadas, já dirigiu carros, já leu jornais, já passou noites em claro e teve dias sonolentos, por que um homem não pode gastar todo o seu parco salário numa máquina caça-níqueis, se isso lhe aprouver?

As investidas da polícia contra o jogo ilegal, francamente, não passam de desperdício de energia e recursos. Até porque proibição do jogo é que fomenta a criminalidade, assim como a proibição das drogas financia a bandidagem.

Mas por aqui é assim: a solução não é educar; é proibir. E proibir quase sempre é fácil. Só que quase nunca funciona.

Nenhum comentário: