quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008



28 de fevereiro de 2008
N° 15524 - Paulo Sant'ana


Não sei se vou ou fico

Mesmo quando a gente está em férias e viaja, sente nos primeiros dias de distância uma saudade do nosso lar, do papo com os amigos na cidade em que se mora, bate até uma falta enorme do ambiente de trabalho e também do próprio trabalho.

É um absurdo, uma besteira, mas a gente sente.

Eu sei que é o cúmulo da idiotia querer voltar para casa logo após ter deixado a casa em férias, mas é coisa que acontece muito freqüentemente.

Sobre esses dois corações que nos restam quando nos ausentamos do nosso ambiente original ou do nosso pago, no início de sua carreira, há 30 anos, Martinho da Vila compôs um samba exemplar nos primeiros versos:

Não sei se vou
Não sei se fico
Se fico aqui
Ou se eu fico lá
Se estou lá tenho que vir
Se estou aqui eu tenho de voltar.

Tem vários tipos de pessoas e vários tipos de síndromes entre os que se ausentam de casa.

Há os que carregam o mais vasto arsenal de material afetivo quando viajam: desde os chinelos até a cuia de chimarrão e a chaleira.

Há os que levam as fotos das paredes, há os que levam os cachorros, os que carregam a empregada, os que tiram fotos de suas camas, até de seu banheiro, só para se sentir em casa no lugar para onde vão.

E há os que transportam quase por inteiro a sua biblioteca, não vão ler nada, mas querem continuar perto de seus livros.

Há um tipo exótico de gente, passando agora para o terreno das afeições interpessoais, que leva na viagem a mulher, os filhos, mas também leva o melhor amigo. Não querem ficar sem nada que lhes pertença no lugar que escolheram para tirar as férias.

E há também o tipo mais especial mas também mais racional para essas hipóteses de afastamento dos seus valores habituais: é o sujeito que sabe que não pode ficar longe de suas coisas e das pessoas de que gosta e simplesmente se recusa a viajar, se é para ficar sentindo falta de tudo que o cerca, estragando assim a viagem, então se poupa desse incômodo ou tortura não se afastando de seu ambiente original.

De minha parte, faço exatamente o contrário dessas pessoas. Quando viajo, não levo nem escova nem pasta de dentes, compro tudo à chegada no lugar para onde me dirijo.

Tenho até exagerado nessa prática, muitas vezes não levo nem carteira de identidade, o que me tem causado imensas complicações.

Quero mudar completamente de ares. Sei que não conseguirei se carregar uma bagagem gigantesca de coisas identificadas com minha habitualidade.

Tive um amigo que viajava só com a roupa do corpo, não carregava bagagem para despachar, nem de mão. Entrava só com o corpo na viagem, assim mesmo um corpo modificado: raspava a cabeça e o bigode, cortava esmeradamente as unhas, até os óculos ele deixava em casa e logo à sua chegada no lugar de destino ia a um oculista e comprava outras lentes.

Sentia-se invejavelmente um homem novo em cada viagem. E se virava comprando de tudo no lugar da chegada, roupas, sapatos, alpargatas, remédios. E se esforçava com talento para achar lá uma outra mulher que não a sua, a qual deixava estrategicamente em sua cidade e em sua casa.

Um homem admirável aquele meu amigo no seu aferrado anti-sedentarismo.

Cá para nós, é uma idiotice viver em Porto Alegre e carregar todas as suas coisas para férias em Recife. Se todas as suas coisas e pessoas lhe acompanharem até Recife, vai ser a mesma coisa que estar novamente em Porto Alegre. Para que gastar na viagem?

Eu já decidi que não vou levar mais nada do que possuo quando viajar para longe, dentro do Brasil.

Não vou levar nada. Da minha cidade, posso levar só, contra meu esforço mental, raras recordações.

Já chegam os discursos ininteligíveis do Lula na televisão, que teimam em me acompanhar todos os dias, em todos os lugares brasileiros que visito.

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