terça-feira, 26 de fevereiro de 2008



26 de fevereiro de 2008
N° 15522 - Paulo Sant'ana


O ébrio

Eu fico abismado com a tecnologia que estão empregando nos aparelhos de som dos carros novos.

A última agora é que o motorista soca no tocador de CD do carro seis discos. Seis discos. E sai a andar pela cidade ou a viajar.

Vai ouvindo seis discos, cerca de 90 músicas. Basta digitar no teclado para escolher um dos seis discos que quer ouvir. Depois digita outro teclado e escolhe a música. É fantástico.

E quando cansa daquelas 90 músicas, troca por outras 90.

É uma mordomia formidável.

Eu vivo dizendo que tenho decoradas no compartimento de memória do meu cérebro cerca de 2,8 mil letras e melodias de música. As pessoas ficam espantadas quando me ouvem cantar no rádio e na televisão músicas de 50 anos atrás.

Quando eu era criança, não tinham inventado ainda o rádio portátil e nem eu possuía rádio de cabeceira. Este último, quem tinha era meu pai, que não me deixava ouvir o rádio dele.

Então, como é que eu decorei 2,8 mil músicas? Não sei. Eu me lembro que um amigo, lá no Morro da Polícia, o soldado da Brigada Militar de nome Melo, me emprestava sua galena, uma geringonça de fios e fones, ligada não sei em que antena, em que eu escutava rádio, portanto músicas.

Foi portanto um milagre de comunicação e/ou vocação eu ter arquivado tantas músicas e poemas na minha memória.

Mas o que eu queria dizer é que hoje, com gravadores, tocadores de CDs e outras mordomias tecnológicas, fica mais fácil para as pessoas ouvir e decorar letras de músicas do que no meu tempo de criança e jovem.

Se eu fosse criança hoje, quando alcançasse meus 40 anos, eu seria um museu ambulante de imagem e de som.

Eu nem precisava ter carro novo, bastava-me ter um tocador de CDs, destes modernos, adaptado ao meu patinete de menino.

Porque para mim o aparelho de som de um carro vale mais em dinheiro do que o próprio carro. O que interessa é o som, mesmo que instalado num calhambeque caindo aos pedaços.

Isso me faz pensar na importância dos ouvidos, como de quaisquer dos outros quatro sentidos, na formação de uma pessoa.

Os milhões de versos que ouvi passaram pelo meu cérebro, e aqueles de que mais gostei acabaram arquivados para sempre em minha memória.

Porque eu escutava, há 60 anos, o grande cantor popular Vicente Celestino, é que sei a letra de O Ébrio inteira, da qual transcrevo uma parte, porque é sensacional:

Tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer

Aquela ingrata que eu amava e me abandonou

Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer

Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou

Só nas tabernas é que encontro meu abrigo

Cada colega de infortúnio é um grande amigo

Que embora tenham como eu seus sofrimentos

Me aconselham e aliviam meus tormentos

Já fui feliz e recebido com nobreza até

Nadava em ouro e tinha alcovas de cetim

E nos parentes confiava, sim

E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então

O falso lar que eu amava e a chorar deixei

Cada parente, cada amigo era um ladrão.

Me abandonaram e roubaram o que amei.

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