sábado, 23 de fevereiro de 2008



23 de fevereiro de 2008
N° 15519 - Ricardo Silvestrin


Abismos

Tudo começou com Edgar Allan Poe. Foi o que disse Julio Cortázar, um grande contista, sobre a origem do gênero conto tal como o conhecemos hoje.

No seu livro Valise de Cronópio, Cortázar mostra que, paralelamente a Poe, o que se fazia ainda era quase que romances reduzidos. Já as histórias de Poe sim é que traziam a ciência da narrativa de poucas páginas. E o universo sombrio dele criava uma nova maneira de contar tudo.

Lembrei do americano Edgar Allan Poe, esse contista e poeta do século 19, vendo o filme novo de outro americano sombrio: Tim Burton, com seu Sweeney Todd - O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet.

Vemos na tela uma narrativa que parece aprendida na grande literatura. Há o canto contando o enredo, como na tragédia grega. Há uma história singular que se sustenta como ficção. Não quer ser realidade disfarçada. Ao mesmo tempo, testa os limites do humano.

Somos desafiados a suportar até onde podemos ir. Não se pretende apenas entretenimento. O filme chega a fazer mal. No final, nada se resolve. Saímos mais assustados do que começamos. Como no poema Escadas, do Quintana: "Ah, tu querias que eu te embalasse?! Eu estava, apenas, explorando uns abismos....".

Esse mérito de ir além do trivial, numa estrutura de grana, de bilheteria, de investimento pesado de americano, é uma novidade alentadora. O filme é um luxo. Tudo funciona. A fotografia, a interpretação dos atores, a arte do cinema feita com todo o requinte e a capacidade artística e técnica que se tem disponível.

E contando uma história corajosa de uma forma corajosa. Pode parecer à primeira vista que Tim Burton está fazendo brincadeirinha. Conta uma história lúdica, irreal. Mas é isso justamente o que permite a ficção. Esse componente estranho é o que faz a arte ser arte. Desde o chapeuzinho vermelho.

O lobo que engole a vovó, os caçadores abrem a barriga e trazem a velha de volta... O Prometeu que foi acorrentado e condenado a que um abutre comesse seu fígado aos poucos... O Édipo que mata o pai, transa com a mãe e por aí vai.

Esse alargamento das possibilidades de pensar a condição humana se dá na ficção. E por ser estranho nos prende. Dias e dias nas páginas de um livro. Horas sentados no escuro do cinema. Não é por acaso que tanto Poe quanto Tim também escreveram poesia.

O Corvo, de Edgar Allan Poe, é um dos mais famosos poemas da literatura universal. E Tim Burton lançou em 1997 o livro de poemas O Triste Fim do Pequeno Menino Ostra e Outras Histórias, lançado no Brasil pela editora Girafinha.

A experiência da poesia permite conhecer o estranho da palavra. Um sentido inusitado, um som, um desenho com as letras. Quem conhece a palavra por dentro sabe que a arte se faz a partir da linguagem.

Tim Burton navega pelos diversos níveis de linguagem que se entrelaçam no cinema: o canto, a poesia, a narrativa, a pintura e, como resultado de tudo, a arte. Ele sabe que uma boa obra de arte não foi feita para que se goste. Mas para que se fique incomodado com ela.

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