sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008



Hélio Nascimento
22/2/2008


Gosto de sangue

Habitual observador da agressividade, explícita nos personagens nos dois filmes sobre Batman que realizou, ou apenas exposta ou quase sempre contida na figura de Edward Mãos de Tesoura, o diretor Tim Burton teria mesmo de mostrar interesse por levar à tela Sweeney Todd, musical composto por Stephen Sondhein, que antes de se transformar num dos maiores nomes do gênero havia escrito as letras das canções de West Side Story, de Leonard Bernstein.

Hoje ele é até mesmo conhecido pelos que nunca viram, no cinema ou no palco, um musical, graças a uma canção de um deles, baseado, por sinal, num filme de Ingmar Bergman, Sorrisos de Uma Noite de Verão.

Send in the Clows, gravado por muita gente célebre, é só um exemplo da música de Sondhein, que, principalmente na parte orquestral, é um dos elementos que mais contribuem para que o novo filme de Burton seja obra a ser considerada com a devida atenção.

Evidentemente, ao decidir que os próprios intérpretes cantassem em cena, no lugar de profissionais que poderiam ter suas vozes utilizadas através da dublagem, Burton estava consciente dos riscos que corria. Apostou, no entanto, em algo que o cinema muito aprecia: o realismo.

Tal opção termina contribuindo para que nada destoe do conjunto e até mesmo que em algumas cenas o resultado seja excepcional, como na exaltação das navalhas, uma referência do cineasta a Edward Mãos de Tesoura, e também na apresentação do falso barbeiro italiano, de um humor rossiniano.

Um musical, no cinema, não deveria assustar a ninguém, mesmo que, como no caso, ele se assemelhasse a uma ópera.

Este gênero, a ópera, uma forma musical criada pelo Renascimento, é quase uma antecessora do cinema, que dela aproveitou muitas sugestões, desde o acompanhamento musical até o emprego de motivos condutores (um tema musical para cada personagem ou para cada tema do relato), algo que até Eisenstein se lembrou ao levar para o visual tal recurso, no Encouraçado Potemkin. Numa ópera, uma peça teatral dominada pelo canto, nem sempre tudo é cantado.

Em muitas delas, a palavra aparece sem acompanhamento musical, como na Flauta Mágica, de Mozart. Daí descendem as operetas e os musicais. Esta também é a origem de Sweeney Todd.

Há, no primeiro Batman dirigido por Burton, uma cena antológica, aquela na qual o Coringa invade um museu, acompanhado de seus asseclas e ao som de um rock de Prince.

É quando tal personagem destrói vários exemplos da cultura humana, entre eles o quadro Rosa e Azul, de Renoir, cujo original se encontra no Museu de Arte de São Paulo.

Esta demonstração de agressividade destruidora expressa com clareza e poder de síntese o tema principal da obra de Burton: o conflito entre instinto e cultura. De certa maneira o processo cultural é a transformação da agressividade em força criativa.

Na citada seqüência, o Coringa impede que os atos de vandalismo também deformem um quadro de Francis Bacon, porque este artista o personagem de Jack Nicholson aprecia.

A vingança de Parker, vítima de um juiz que se deixa dominar pela irracionalidade, levando-o ao desejo incestuoso pela filha simbólica, algo que o transforma em projeção do protagonista, se insere com perfeição na filmografia de Burton.

E a cena final é uma notável variação em torno da Pietà. Desde Gritos e Sussurros que o cinema não se aproximava tão dramaticamente de tal tema. É preciso também acrescentar que música não é apenas manifestação de alegria e vitalidade.

Ela também é instrumento para a criação de uma atmosfera na qual a dramaticidade nos revela a essência da dor humana. Este epílogo também mostra que a violência e a irracionalidade nos conduzem ao desastre.

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