quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008



20 de fevereiro de 2008
N° 15516 - Paulo Sant'ana


Quinhentos talheres

Eu senti que estava apaixonado irremediavelmente por aquela mulher quando não encontrava defeitos nela. E sequer adivinhava pudesse ter defeitos.

E estava tão envolvido por aquela mulher, amando-a, nutrindo ardente paixão por ela - sei lá como definir aquele fogo que incendiava meu corpo e minha mente - , que flagrava a todo instante os seus atributos e qualidades. E quando não os flagrava, adivinhava-os.

E era tão mágica minha sintonia com aquele ser envolventemente superior, aquela jóia rara que encontrei por acaso num cantinho despretensioso do meu cotidiano, exatamente no fumódromo, um lugar talhado para irromper uma grande paixão,

eis que ali todos ficam absortos em seus pensamentos e tecem balanços da sua vida, insinuando que poderão mudar seu rumo, que antes mesmo que ela falasse eu já sabia o que ia dizer, antes que palpitasse eu me capacitava do que ela estava sentindo, antes que me deliciasse com sua declaração de amor eu já usufruía daquela delícia de rendição sentimental.

Estávamos os dois completamente apaixonados um pelo outro e tudo que nos cercava na vida perdia a sua importância intrínseca e objetiva para se tornar apenas complemento do nosso já histórico caso de amor, sem dúvida o maior que já nos acontecera e jamais aconteceria no futuro em nossas vidas algo igual.

Eu já transportava a imagem daquela mulher, nas configurações tresloucadas do amor delirante, para além da vida. E já a via como uma branca visão que entre os sepulcros erra, visitando o meu túmulo após a minha morte, à sombra dos ciprestes.

E quando ela lesse a minha lápide ("aqui jaz um homem que não fez outra coisa na vida senão amar e entregar-se às suas amadas e às suas causas"), meu coração estaria palpitando de amor dentro da terra.

Ah, o amor, quando virei por fim a cansar-me dele, a desistir dele, a afastar-me dele, a desiludir-me dele? Quando?

Se ele é que me move e ergue, se não há sentido na vida sem ele, embora sua inevitável frustração seja exatamente o que torna a vida sem sentido, então só no dia que minha alma e meu coração se tornem inférteis ao amor - só neste dia, se não me sobrevier a morte, encontrarei a paz. Nem que seja a paz dos cemitérios.

Ocorre-me neste instante que nos cemitérios, como nos necrotérios, são ali os únicos lugares da face terrestre em que convivem em contubérnio sublime ou terrível a morte e a vida.

Mas voltando ao amor, afastando de mim estes solavancos de intimidade com a idéia da morte, que me perseguem em pesadelos diários, só ele, amor, consegue me transportar para o terreno da ternura suprema.

Quando amo, parece que estou levitando, que, como o profeta Elias, estou subindo para o céu num carro azul de glórias.

Ah, o amor, quanto me fez feliz, mas também quanto me fez infortunado.

Ah, o amor, quanto me tornou sábio, mas também quanto me fez restar tonto.

Ah, o amor, lembro-me bem que uma vez, quando minha amada saciou-me de amor na alcova, deu-me fome e era tão linda que decidi ir mostrá-la, num ímpeto de exibicionismo, aos perplexos freqüentadores da churrascaria mais famosa de Porto Alegre.

E quando nós passávamos pelo corredor em busca de nossa mesa - eu fiz aquilo de propósito decidido - , ela era tão bonita e tão apetitosa, que, à nossa passagem, os olhos de todos só se fixavam no corpo e no rosto dela, os garfos das pessoas derrubavam-se de suas bocas e caíam no chão!

Eu já amei tanto na vida - e tão bem - que até provocava nos restaurantes o tilintar dos garfos no chão.

Mas era pouco o tilintar de meia dúzia de garfos para homenagear uma mulher para 500 talheres.

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