terça-feira, 26 de fevereiro de 2008



26 de fevereiro de 2008
N° 15522 - Cláudio Moreno


A utilidade do inútil

Jamais, na história deste planeta, houve época tão radicalmente utilitarista quanto a nossa. Na lógica implacável do sistema, só o que é útil é bom - e, conseqüentemente, tem valor e merece ter um preço.

Nunca dantes, como hoje, os bárbaros se sentiram tão à vontade para questionar para que servem atividades como a poesia, a ikebana, as aulas de educação artística ou os congressos de filatelia, que eles consideram perfeitamente desnecessárias.

Para tornar o cenário ainda mais desalentador, muita gente bem intencionada se esforça em discutir com esses filisteus, tentando demonstrar-lhes a profunda utilidade de tudo isso - sem se dar conta de que, ao entrar num debate desse tipo, já começam perdendo, pois apenas vão reforçar a idéia dominante de que o homem e a natureza são coisas utilizáveis.

Sempre houve quem reagisse desse modo, mas felizmente eram vozes isoladas. Em Roma, Plínio não esconde sua admiração por esses heróis da frivolidade:

além de uma cópia da Ilíada (são mais de 15.000 versos!) escrita num rolo de pergaminho tão reduzido que poderia ser guardado na casca de uma noz, ele menciona o trabalho de Calícrates, que ficou famoso por suas formigas esculpidas em marfim, tão diminutas que não se enxergavam, a olho nu, suas antenas e suas patinhas.

No entanto, um século depois, Aeliano, também romano, ao comentar os dois exemplos que tinham atraído a atenção de Plínio, declara que "nem um nem outro merecem elogio, pois tudo o que fizeram foi desperdiçar seu tempo e seu esforço em coisas completamente inúteis".

Alexandre Magno foi outro que sucumbiu à ditadura da objetividade. Um camponês, depois de muitos anos de persistente treinamento, adquiriu a especialíssima habilidade de arremessar feijões (uns dizem que eram grãos de ervilha), com pontaria certeira, na boca de um pequeno frasco, fosse qual fosse a distância.

Encorajado por amigos, conseguiu uma audiência com Alexandre para demonstrar a sua técnica. Alexandre assistiu, em silêncio, a uma espetacular sessão de arremesso de grãos, ao cabo da qual recompensou o pobre camponês com um saco cheio de... feijões, dizendo-lhe que aquela era a recompensa que ele merecia por ter devotado sua vida ao aperfeiçoamento de uma arte tão escandalosamente inútil.

O que nos resta, neste momento, é resistir de todas as maneiras ao estreitamento desse círculo de aço que vai transformando nossa relação com o mundo e com os outros numa mera rede de serviços recíprocos e quantificáveis.

Quem nos dá a receita é Chuang Tzu, taoísta dos bons, ao explicar a seus discípulos por que razão, no meio de um vale devastado pelo machado dos lenhadores, sobrevivia, solitária, uma árvore magnífica:

"Ela só continua viva porque não serve para nada; sua madeira apodrece e cria vermes na primeira lua cheia. Aprendam, com ela, a valorizar a utilidade do inútil".

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