08 de fevereiro de 2014
| N° 17698
NÍLSON SOUZA
Náufragos
A história do náufrago
salvadorenho salvou a semana, se me permitem o trocadilho. O barbudo passou
mais de um ano à deriva em alto-mar, bebendo sangue de tartaruga. Ou mentiu.
Ninguém acreditou muito que um homem submetido a tamanha privação pudesse
aparecer gordinho e corado meses depois de se perder no oceano, em meio a uma
tempestade. Mas os colegas do pescador de tubarões confirmam seu
desaparecimento no México, no final de 2012, no mesmo barco de fibra de vidro
que apareceu estropiado nas ilhas Marshall, 10 mil quilômetros adiante. Coisa
de filme.
De certa forma, o fato guarda
semelhança com o oscarizado As Aventuras de Pi, aquele em que um jovem indiano
sobrevive por semanas num bote salva-vidas, na companhia de um
tigre-de-bengala. Tigres e tartarugas são muito diferentes, sei disso. A
semelhança está naquilo que não vemos. O filme, além das cenas belíssimas, tem
um dilema no final: ou você acredita na história fantasiosa da arca de Noé em que
se transformou o barco à deriva, ou encara uma realidade dolorosa e cruel,
protagonizada por humanos que se entredevoram na busca desesperada da
sobrevivência.
Somos todos náufragos de nossas
memórias. Toda vez que falamos do passado, reescrevemos nossa própria história
com outras tintas, selecionando lembranças que nos agradam e descartando muitas
das que nos fazem sofrer. Não o fazemos por mal. Queremos agradar, queremos ser
felizes, queremos que os outros nos reconheçam. Imagine-se então um homem sozinho,
no meio do oceano, sem testemunhas nem câmeras espiãs como essas que nos
acompanham por todos os lugares nas cidades. Esse homem, até pela licença
poética de seus delírios, pode reinventar a sua aventura do modo que bem
entender.
Há muitos pontos obscuros na
história de José Salvador Alvarenga. Não se sabe exatamente como seu
companheiro de barco morreu, como ele se manteve tão saudável com pouco
alimento, como driblou o sol, como encontrou tantas tartarugas para beber.
Talvez ele até conte algum detalhe escabroso de sua viagem sem destino quando
virar personagem de livro ou filme, pois logo alguém vai querer faturar em cima
desse episódio.
Aí, a gente escolhe no que
acreditar. Por enquanto, fiquemos com o milagre da sobrevivência num mundo em
que todos somos náufragos de esperanças.
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