sábado, 15 de fevereiro de 2014


15 de fevereiro de 2014 | N° 17705
O PRAZER DAS PALAVRAS | CLÁUDIO MORENO

Xale

Esta vem bem de longe: um leitor escreve de Tomar, Portugal, sobre uma questão doméstica: “Sendo brasileiro e morando em Portugal com os meus pais, surgiu-nos uma dúvida na qual todos parecem discordar. Eu sempre escrevi xale, minha mulher diz que sempre escreveu xaile e meu pai teima em afirmar que quando era pequeno escrevia chaile. Afinal, quem tem razão?”. Ora, para acabar de vez com qualquer discórdia na família, já vou dizendo de pronto que todos estão certos lá à sua maneira – e não se trata, como veremos, de uma simples acomodação diplomática de minha parte.

Em primeiro lugar, devo esclarecer que xale (ou xaile, na variante lusa) deve ser escrito com “x”. Não podemos esquecer, porém, que a ortografia de nosso idioma foi reformada radicalmente nos Acordos de 1943 e de 1945, e certamente muitos autores recomendavam o “ch” antes dessa data – o que torna muito plausível as lembranças de teu pai, que assim deve ter aprendido nos primeiros ano de escola. Sua memória está em dia: quando pequeno, ele realmente escrevia chaile. Só não têm razão aqueles que usam xales como singular (“Ela ganhou um xales lindo”); conheço uma velhinha que fala assim, mas ela me é tão querida que isso lhe dá o direito de falar como quiser.

Mas voltemos: se no Espanhol é chal e no Francês é châle, por que diabo não ficamos nós com o “ch”, como chegou a ser escrito? Ocorre que aqui seguimos uma lógica bem conhecida de aportuguesamento, presente em muitos outros vocábulos com início semelhante. O normal, nessa posição, é usarmos “x” onde o Inglês usa “sh”: esta peça do vestuário, denominada de shal pelos persas, entrou na Inglaterra como shawl e aqui como xale. É um padrão bem evidente: shilling deu xelim, shaman virou xamã, shantung (o tecido) deu xantungue, o sheikh do deserto é o nosso xeque (ou xeique), assim como sheriff aqui entrou como xerife. É por isso também que a Shangai dos ingleses aqui aparece como Xangai, e o shogun deles vira xógum aqui.

Esta também é a explicação para o xote – do Alemão schotisch, literalmente “escocesa”, nome com que designavam um tipo de polca que se tornou muito popular aqui e além-mar, onde se chama chotiça. Esta mesma diferença de escolha entre o “x” e o “ch” pode ser observada em shampoo: aqui ele entrou como xampu, mas Portugal e os países que estão sob sua influência linguística (entenda-se: fora o Brasil, todos os demais países lusófonos) preferiram, inexplicavelmente, champô.

É evidente que a nacionalização de muitos desses vocábulos ainda não está completamente sedimentada, isto é, as duas opções continuam vivas, permitindo que os falantes escolham entre adotar a forma nova, aportuguesada, ou a forma tradicional, em língua estrangeira. Pode ser que os leitores não tenham estranhado nenhum dos exemplos que mencionei acima, mas certamente muitos hesitarão quando tiverem de escolher entre escrever shar-pei e xar-pei (aquele cachorro simpático que parece vestir uma pele duas vezes maior que seu tamanho), ou entre sherpas e xerpas (os bravos guias tibetanos que vivem nas encostas do Himalaia), ou, quem sabe, entre Shiva e Xiva, um dos mais importantes deuses da religião hindu. Eu, por princípio, sempre opto pela forma nacionalizada, mesmo que ela esteja ainda um tanto “verde” e possa parecer um tanto esquisita – é minha pequena colaboração para incentivar o seu uso.

Ao procurar exemplos do emprego de xale, terminei encontrando uma pepita inesperada – o verbo traçar, com um sentido que eu ignorava: “Maria Valéria sentava-se na sua cadeira, traçava o xale, acavalava os óculos no nariz, abria o Correio do Sul” (E. Verissimo – O Tempo e o Vento); “E traçando e destraçando o xale, numa excitação frenética” (Eça de Queirós – O Primo Basílio); “E tocou para o banheiro traçando furioso o lençol em volta do corpo, num gesto melodramático” (A. Azevedo – Casa de Pensão). Confesso que jamais havia notado esse traçando, que devo ter lido, inúmeras vezes, como trançando. Corri ao Amansa e lá descobri que traçar também pode significar “dispor na diagonal sobre o corpo; cruzar, atravessar” –, sendo empregado sempre com relação a alguma espécie de agasalho.


Numa rápida pesquisa, encontrei personagens traçando, sobre a cabeça ou sobre os ombros, um xale, uma capa, uma mantilha, um véu, uma toalha, um lençol e – outra pepita! – um fichu. Um fichu! Mas que achado! Que palavrinha marota! Vou correndo à internet e fico sabendo que, na sua forma genérica, o fichu era um lenço grande, quadrado, dobrado em forma de triângulo, usado sobre os ombros, com as pontas amarradas na frente, permitindo, entre outras coisas, que as damas regulassem o quanto queriam mostrar de decote. Fichu! Essa vai direto para minha caixa de palavras memoráveis – os meus “bilongues”, como diria a incomparável Emília de Monteiro Lobato.

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