24 de fevereiro de 2014
| N° 17714
LIBERATO VIEIRA DA
CUNHA
O porteiro da noite
Li no caderno Viagem, aqui de
Zero Hora, uma excelente matéria sobre o mundo fashion que hoje habita estações
abandonadas do imenso metrô de Londres, o mais antigo do mundo. Lembrei-me no
mesmo instante das histórias que cercavam o de Berlim – e se falo tantas vezes
nessa cidade é porque lá passei, em anos diversos, algumas das melhores épocas
de minha vida.
Era assim: nas noites mais frias,
meus colegas e eu nos reuníamos na grande copa-cozinha do segundo andar de
Kolpinghaus, sem ânimo para enfrentar os ventos árticos que sopravam lá fora. O
vinho corria solto, a conversa também. Pelas tantas, surgia, como uma
assombração, Herr W., o porteiro da noite do hostel, e ordenava silêncio. Mas
sua pose marcial era imediatamente abandonada ao pôr os olhos no rótulo de
algum qualitätswein mit prädikat.
Ao segundo cálice, desandava a
falar sobre seu tema predileto: o fato de estarmos todos sobre um universo
formado por milhares de túneis. Só ao redor do Portão de Brandeburgo, garantia,
havia 40 mil metros quadrados de instalações subterrâneas, construídas umas
pelos nazistas (Herr W. jurava que nunca tinha sido) ou por seus sucessores da
antiga Alemanha Oriental.
Algumas estavam inundadas, mas as
demais, perfeitamente habitáveis, ocupadas por armazéns de munição e produtos
químicos, veículos blindados, reproduções em escala de centenas de quarteirões
berlinenses, como eram antes dos bombardeios devastadores do final da II
Guerra, como se fosse intenção de alguém reconstruir tudo, passada a tormenta.
Fábricas ocultas de armas,
refúgios antiaéreos, dezenas de bunkers, linhas abandonadas do U-Bahn, câmaras
secretas, catacumbas formavam um inacreditável labirinto, que somente perto da
Unter den Linden incluía intermináveis corredores de 20 metros de largura e 10
de altura. Na direção de Dahlen, estendiam-se por quilômetros.
Pelas tantas da noite, todos se
cansavam das histórias de Herr W. e lhe cortavam o fornecimento de Auslese ou
de Eiswein, segura senha para que ele reassumisse seu posto na entrada do
prédio. E então a turma inteira se recolhia ao berço.
Acho que a maioria sonhava com
túneis.
Mas eu não, ocupado com a superfície
visível de alguma deusa de Chipre, de Hong Kong ou com as colinas tão alvas de
uma senhorita ali mesmo da terra de Herr W.
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