15 de fevereiro de 2014
| N° 17705
CELSO GUTFREIND
(INTERINO)
Querido presidente
“Senhor presidente, eu vos
escrevo uma carta...”
Canção de Boris Vian
Querido Mujica, me deixa falar
assim contigo. Teu modo de governar o Uruguai mostra que o senhor não tem
frescura. Usa sandálias, veste, mora, fala, come com simplicidade. Vem propondo
uma sociedade mais justa. Então, eu faço um apelo para ti. Antes, vou contar a
história de uma luta bonita como a tua.
Sei que pode parecer ridículo,
mas o senhor legalizou o uso da maconha. E vai compreender. Fui educado desde
bebê a fazer cocô sozinho. Eu tinha pouco mais de um ano. Não foi tarefa fácil.
Era preciso reconhecer a necessidade, ajustar os esfíncteres, encarar a
solidão. Pior ainda: a pressão de mãe, pai, professora. Só aguentei, porque
faziam tudo parecer solene para mim. Eu era um rei diante do trono. Com tal
pompa, que em breve estava apegado ao meu cocô. Ele era como o ouro para o
ourives, a pedra para o escultor, a maconha para o traficante. Quer dizer, para
o maconheiro, porque agora não haverá mais tráfico no Uruguai. Graças à tua
sensibilidade.
É para este ser sensível que me
dirijo com a mesma simplicidade. Voltando à história, eu estava apegado. O
apego, para a criança, é uma tarefa laboriosa. Eu cheguei a ele com muito afeto
dos outros e esforço meu. O apego é um desafio enorme, pois logo já é preciso
desapegar-se. Despedir-se. O senhor vem se despedindo de mitos arraigados no
coração da sociedade. Por isso, é a pessoa indicada para compreender. Meus
cuidadores eram que nem tu. E acolhiam. Ensinaram-me a olhar para o cocô. A
contar historinha para ele. A cantar: “Adeus, adeus, cocozinho,/Segue em paz
para o fundo/Que eu continuo no mundo/A seguir o meu caminho”.
A melodia era a mesma de O Boi da
Cara Preta. Eu nunca mais esqueci. Até hoje mantenho (em parte) o ritual.
Ganhei peso, altura, amigos, profissão, mulher, filha, mas nunca perdi o apego.
Mesmo que a gente mude, tem sempre algo que fica. O senhor é a pessoa certa
para me entender, basta ver o esforço em manter a companhia aérea Pluna.
Ainda preciso de tempo antes que
o cocô voe. Ou afunde. Claro que o aeroporto novo de Carrasco está bonito,
confortável. E promissor como o teu governo. Mas tem no banheiro um dispositivo
automático que faz o cocô desaparecer de repente. Sei que toda privada deseja
isto, mas a maioria – exceção para as checas, cada vez mais raras – deixa que a
gente ganhe tempo, se despeça, se desapegue.
Querido Mujica, eu agradeço pela
atenção. A carne do teu país está cada vez mais suculenta. E barata. Não
pretendo comer fruta nos próximos dias. Portanto, aguardo sem pressa a volta
das privadas antigas e simples como tu. Despeço-me com carinho. Lentamente.
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