17 de fevereiro de 2014
| N° 17707
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
Crônica para Rose
Num dia qualquer de um mês
esquecido, mas, muito seguramente de um ano da década de 1950, quando o Brasil
era um país com futuro e milhares de imigrantes europeus tentavam reconstruir
suas vidas aqui, dois rapazes descobriram a beleza da Rua João Manoel, em Porto
Alegre. Sentaram-se nos degraus da escadaria que leva à Rua Fernando Machado e
ficaram ali olhando a vista magnífica do Guaíba. Dividiram um Crush, que estava
longe de gelado, de repente em paz consigo mesmos, após longas andanças pelo
Velho Mundo e vários tropeços no Novo.
Mas como não tinham um tostão
para o almoço (o Crush, um suco de laranja artificial, era um luxo a que se
permitiam cada vez mais raramente), resolveram atacar as fortalezas próximas.
Uma delas era o edifício que se chamava Santa Clara. Meu pai atendeu à porta do
apartamento e deu com aqueles dois caras que, apesar dos evidentes sinais
externos de pobreza, pareciam gente honesta. Em que poderia ajudá-los? Um
deles, o de cabelo de fogo, declarou que comprando algumas das telas que
levavam.
Meu pai pediu que mostrassem, o
que foi feito em mais ou menos uns três idiomas. Eu, um guri, espiava tudo de
um canto da sala e até hoje me pergunto se eram holandeses, luxemburgueses,
belgas. Mas como ninguém chegava em nossa casa perto do almoço sem ser
convidado para o trivial variado, foram instruídos por meu pai a tomar assento.
Os dois estrangeiros devoraram salada, arroz, feijão, filé, massa, com um
apetite de náufragos. Aderiram instantaneamente ao vinho de preceito nas
refeições e não refugaram a compota de pêssego da sobremesa.
Seguiram-se negociações
conduzidas em francês por minha mãe. O resultado é este que estou vendo bem
diante de meus olhos, séculos depois: dois quadros retratando paisagens
europeias. Meus pais partiram cedo. As telas não revelam os nomes dos autores.
Pelas assinaturas, são holandeses, mas não tenho como apurar sua precisa
identidade.
Leio agora que George Clooney
transformou em filme o livro Caçadores de Obras-Primas, que eu já havia
percorrido no ano passado. É a história real dos soldados americanos que foram
encarregados de descobrir o paradeiro de tesouros saqueados pelos nazistas ao
longo da II Guerra.
Sou um ser inventivo, ou não me
atreveria a escrever.
Fico contemplando os quadros
deste imenso living e me pergunto qual deles é impossivelmente um Rembrandt,
qual um Van Gogh. Mas aí penso que é melhor meditar sobre mulheres como Rose
Valland, a que salvou centenas de preciosidades do Jeu de Paume, de Paris, sem
nunca imaginar ser retratada em um belo filme ou lembrada nesta mínima crônica
de verão.
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