28
de fevereiro de 2014 | N° 17718
DAVID
COIMBRA
A tarefa de matar
Passei
seis ou sete Natais da minha vida na casa do Lairson e da Moema Kunzler, na
zona sul de Porto Alegre. Segunda passada, o Lairson foi assassinado com um
tiro na cabeça na entrada do condomínio onde fica esta mesma casa de tantos
Natais.
Lairson
era um homem bom, e não há elogio maior que se possa fazer a um homem. Não há novidade
no que aconteceu com ele. O Brasil é um país violento e, entre todas as suas
cidades, Porto Alegre é das mais violentas.
Havia
uma tese de que a violência seria consequência da miséria. Não é, e os números
o provam – a miséria diminui a cada ano, a violência aumenta a cada dia. Há muitíssimos
países mais pobres do que o Brasil e muitíssimo menos violentos.
A
violência brasileira é cultural. É moral. O Brasil está falido moralmente.
Imagine
que o Estado, o Grande Pai Provedor, segundo a crença dos brasileiros, imagine
que o Estado, tornado ainda mais rico graças ao petróleo das profundezas,
destinasse a cada brasileiro R$ 10 mil por mês até o fim da vida. Resolveria os
problemas do Brasil? Não. O Brasil ia piorar. Todos os bandidos, vigaristas,
oportunistas e corruptos deste país teriam mais dinheiro em que se refocilar,
teriam mais mercado para se repoltrear. Você pode reunir todos os dólares do
mundo, e com eles não conseguirá comprar meio quilo de integridade.
A
relação do brasileiro com o Estado é doentia. O brasileiro espera que o Estado
resolva todos os seus problemas e responsabiliza o Estado por todos os seus
males, enquanto os comandantes do Estado não sabem como lidar com o povo
brasileiro: os da direita o negligenciam, os da esquerda o vitimizam.
E aí
está. Assaltos e roubos existem em quase todos os países, é verdade. Mas
assaltos à mão armada, em menos. Assaltos à mão armada com sequestros e execuções,
menos ainda. E o tipo de crime que atingiu o Lairson, em pouquíssimos rincões
deste vasto e triste mundo. Porque o homem que matou Lairson foi de um
profissionalismo seco. Ele tinha um objetivo: tomar o dinheiro que estava numa
bolsa dentro do carro. Quando Lairson pisou no acelerador, colocou-se entre o
bandido e seu objetivo. O bandido resolveu o problema da forma mais prática: disparou
cinco tiros, feriu Lairson de morte, parou o carro, pegou a bolsa e foi embora.
Missão cumprida.
Quer
dizer: ali estava uma pessoa que, para alcançar seus fins, utiliza quaisquer
meios. A vida de outro ser humano, para ele, não é objeto de ponderação. Tanto
faz matar ou não matar.
Homens
assim, brasileiros assim, estão em toda parte. Você deve ter cruzado com alguns
no supermercado, se irritado com eles no trânsito, pode ter trocado palavras
com um ou outro numa fila de repartição, num show, num bar da Cidade Baixa.
Qual
é a culpa desse homem, além do óbvio crime que cometeu? Qual é o seu problema,
que é também o problema deste país?
Ele
não sente, ele não pensa. Essa é a culpa. O outro, para ele, não está em suas
considerações. Ele não sentiu, ele não pensou, ele não sabe que o ato dele fez
diferença, que mudará a vida de outras pessoas que com ele partilham o oxigênio
da Terra. Ele não pensou que Lairson tinha uma mulher que o amava, a doce
Moema, e três filhos. Não pensou nas dezenas, centenas de amigos que o
prantearam no velório. Não pensou, não pode ter pensado em todos os que ficaram
sofrendo pelos que sofrem por Lairson. Não pensou que os Natais na casa da Zona
Sul nunca, nunca mais serão os mesmos.
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