16 de fevereiro de 2014
| N° 17706 VERISSIMO
As aventuras da família
Brasil
Sem intimidades
A escrita nasceu da necessidade
de não esquecer. O primeiro hominídeo que pensou Preciso me lembrar disto deve
ter olhado em volta e procurado alguma coisa que ele não sabia o que era. Era
lápis e papel, que ainda não tinham sido inventados. A angústia primordial da
humanidade foi a de perder o pensamento fugidio. Imagine quantas boas ideias
não desapareceram para sempre por falta de algo que as retivesse na memória e
no mundo. A história da civilização teria sido outra se, antes de inventar a
roda, o homem tivesse inventado a Bic e o bloco de notas.
As espécies que não desenvolveram
a escrita valem-se da memória instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde
nasceu sem consultar um parente ou um mapa. Já o homem pode ser definido como o
animal que precisa consultar as suas notas. Nas sociedades não letradas as
lembranças sobrevivem na recitação familiar e nos mitos tribais, que são a
memória ritualizada. Todas as outras dependem do memorando. Mas, mesmo com
todas as formas de anotações inventadas pelo homem desde o tempo das cavernas,
inclusive o “notebook” eletrônico, a angústia persiste.
O que está aí em cima é o resumo
de um texto que escrevi há anos, depois de ter uma ideia para crônica, confiar
que bastaria anotar uma frase para me lembrar da ideia — e imediatamente
esquecê-la. Eu já havia desistido de ter um bloco de notas sempre à mão para o
caso de sonhar com uma boa ideia ou ter um lampejo criativo, porque minha
experiência era que nenhuma ideia sonhada resiste à luz do dia e os lampejos
aproveitáveis aconteciam invariavelmente no chuveiro. Mas, desta vez, o lampejo
foi num lugar seco e anotei a frase: “Conhece-te a ti mesmo, mas não fique
intimo”. Boa, boa. Só que, quando sentei para escrever a crônica, a frase tinha
perdido o sentido. Não me ajudava a me lembrar de nada. E não me lembrou de
nada até agora, quando, por acaso, a vi escrita num bloco de notas antigo e
finalmente me entendi.
O que eu quis dizer, eu acho, é
que é positivo e saudável o ser humano se conhecer, desvendar todo os seus
mistérios e exorcizar todas as suas culpas, com ou sem orientação científica ou
religiosa. Ou será que é mesmo? Talvez o conselho mais prático e racional seja
se conhecer, sim, mas evitar muita intimidade com esse ser que atende pelo
nosso nome, tem os mesmos pais e o mesmo CPF, torce pelo mesmo time e nos
levará junto quando morrer. Como em qualquer relacionamento humano, nas nossas
relações com nós mesmos deve haver um certo recato e cuidado para evitar
mal-entendidos. Familiaridade demais pode gerar desprezo e revolta. Quem sabe o
que nos espera lá no fundo sombrio, nos nossos mergulhos de autoconhecimento?
Melhor ficar na superfície, que é mais clara e tranquila.
Junto com a frase anotada anos
atrás há outra, também para me lembrar de uma ideia para crônica. A frase é: “O
abacaxi é fruta a contragosto”. Mas esta eu não tenho a menor ideia do que
queria dizer.
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