MAURICIO
STYCER
O autor invisível
A decisão da Globo de mostrar, ou
não, beijo gay mostra como é relativa a autonomia de seus autores
Nas duas semanas que antecederam
a estreia de "Em Família", nova novela das 21h na Globo, o veterano
Manoel Carlos deixou bem claro em entrevistas que a autonomia criativa concedida
aos autores da emissora é muito relativa.
Questionado pela "Veja"
se no Leblon da ficção haveria espaço para os manifestantes que tomaram o
bairro em 2013, o autor respondeu: "É evidente que sim. Fiquei orgulhoso
de os jovens escolherem o Leblon como palco de seus protestos".
A revista, então, perguntou se
eles seriam retratados na novela. "É pena, mas não posso tocar nisso em
ano de eleição", disse. "Sabe como eu ia começar a história? Quando
se dava o salto entre a primeira e a segunda fase da novela, as manifestações
de junho passado no Leblon marcariam a passagem do tempo. Mas aí a Globo me
pediu para mudar. Eles não deixam, e ponto."
Dizendo entender a restrição,
acrescentou: "E por uma razão defensável: ao falar de política numa
novela, você cria áreas de atrito que afetam o andamento da história. Fica uma
coisa chocha, pois o autor não tem liberdade de dizer o que pensa de verdade
dos políticos".
Essa impossibilidade de dizer
"o que pensa de verdade" afeta os autores da emissora em outras
questões. A mais famosa delas é o chamado "beijo gay". Questionado
por diferentes jornalistas se o casal de lésbicas que será visto na novela
"Em Família" vai se beijar, Manoel Carlos foi mais uma vez
pragmático: "Se eu achar que cabe e a Globo permitir, pode, sim,
acontecer".
O já célebre beijo entre Félix
(Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) no capítulo final de "Amor à
Vida", o primeiro entre dois homens em uma novela das 21h da Globo, só foi
visto porque a emissora o aprovou previamente.
Diferentes autores, nas últimas
décadas, criaram papéis e situações que levariam, naturalmente, a um beijo
entre personagens masculinos. No caso mais famoso, em "América", em
2005, a cena chegou a ser gravada, mas não foi ao ar.
Em entrevista ao livro
"Autores "" Histórias da Teledramaturgia", editado pela
própria Globo, em 2008, Gloria Perez conta: "A direção da emissora achou
que a cena não devia passar porque poderia chocar a maioria do seu público. Não
discuto: em todas as emissoras do mundo, cabe à direção decidir o que vai e o
que não vai ao ar".
"Foram apresentadas
gravações com diferentes formatos, que permitiam entender, com mais ou menos
intensidade, que estaria ocorrendo um beijo", reconheceu a emissora.
"A direção da TV Globo, ainda sim, determinou uma mudança na versão
escolhida, optando pela abordagem que julgou mais apropriada para exibição numa
novela das oito."
Agora, em 2014, segundo o
noticiário, o procedimento se repetiu. Diferentes versões do beijo na novela de
Walcyr Carrasco teriam sido gravadas e submetidas à direção da emissora, que
aprovou uma delas. "O beijo entre Félix e Niko selou uma relação que foi
construída com muito carinho pelos dois personagens", disse a Globo em
nota oficial.
"Foi, portanto, o
desdobramento dramatúrgico natural dessa trama", acrescentou a nota,
realçando a ambiguidade. Em se tratando de alguns assuntos, o autor da novela
não é só aquele cujo nome aparece nos créditos.
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