18 de fevereiro de 2014
| N° 17708
FABRÍCIO CARPINEJAR
Estrela-do-mar
Porto Alegre, 40°C. Patrão e
patroa acompanhavam a novela das nove na sala, e só reclamavam do calor. Já
estavam com aquela tosse alérgica. O ventilador fazia mais barulho do que
vento. As janelas abertas apenas carregavam mosquitos. Eles não se concentravam
no som das imagens por absoluta apatia. As pálpebras tremiam de cansaço. O véio
aproveitou o comercial e pediu licença para sua véia.
– Vou dar um pulo na garagem e já
volto.
– Tudo bem, meu véio, não demora,
que é tarde.
Quarenta minutos, e nada do véio
voltar.
A véia pensou duas vezes antes de
levantar da cadeira. A velhice é minimizar os esforços: quando se senta, não se
levanta por qualquer coisa.
Mas a preocupação tomou conta,
estava virando aflição, terço, coceira de aliança.
O que será que aconteceu? Desceu
a pequena escada até a garagem.
Encontrou o véio misteriosamente
trancado no carro. Coisa esquisita. Será que foi se matar? Ela se lançou a
abrir a porta, com a respiração ofegante.
Então, de olhos fechados, o véio
levou um tremendo susto, como que pego em flagrante.
– O que está fazendo aí dentro?
– Não aguentei o calor, e vim
descansar com o ar-condicionado.
O véio tinha aquele rosto culpado
de cachorro que comeu o osso alheio. Tanto que se encolheu para dar a resposta.
A véia avermelhou as bochechas.
Aquela mulher era muito temperamental. Geniosa. Indomável.
Mas em vez de xingá-lo, disse com
toda a ternura: – Mas por que você não me chamou?
Diante do encolhimento de ombros
do marido, ela sumiu por instantes e voltou arrastando um edredon e travesseiros.
Entrou ao lado do véio, deitou na
cadeira e falou:
– Pode dirigir meus sonhos. Será
nossa segunda viagem de lua de mel, nosso segredo.
Passaram a madrugada sob a
refrigeração do veículo. Esqueceram a previsão do tempo. Esqueceram o inferno.
Esqueceram o terror da insônia. Esqueceram os pijamas empapados de suor.
Esqueceram a sede. Esqueceram as lamúrias.
Esticados, cada um em sua poltrona,
roncaram com surpreendente tranquilidade.
Não dormiram de conchinha, mas de
estrela-do-mar. As pontas dos dedos se tocaram amorosamente ao longo da noite.
Não dormiram de conchinha, mas de estrela-do-mar.
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