domingo, 16 de fevereiro de 2014

Antonio Prata

Estiagem

Dia desses, vou abrir o jornal e ver alguém defendendo o linchamento como uma forma de democracia direta
Ontem, por uma dessas coincidências que não guardam nenhum sentido oculto, mas adicionam à vida uma pitada de mistério, peguei para ler "Ai de ti, Copacabana" e, horas depois, a caminho de uma reunião, passei em frente à nossa escola. Pois tenho a infelicidade de te informar que aquele casarão e o pátio em que você me deu o livro do Rubem Braga -o maior presente que já ganhei- agora jazem sob os 19 andares de um equívoco neoclássico chamado Beverly Hills Plaza, com quatro vagas e oito colunas jônicas por andar -prova de que, mesmo 15 séculos após a invasão dos Vândalos, segue em marcha o declínio do Império Romano.

Fiquei parado ali na calçada, olhando pra cima, pensando que nada poderia estar mais distante das pitangueiras e sabiás do Rubem Braga do que aquelas varandas raquíticas com seus pinheirinhos em formação militar -pobres árvores de clima temperado, vítimas do destempero paulistano em sua luta para anular os trópicos. Lembrei dos recreios ensolarados do colegial, quando nos sentávamos no chão para jogar truco. Se num daqueles recreios eu tivesse tentado te beijar, talvez minha adolescência houvesse sido ensolarada também, mas eu era tímido, e a libido só encontrava vazão no grito desastrado: "Truco, marreco!".

Usei solar como sinônimo de feliz e me arrependo: ultimamente, o governo do Astro Rei tem sido bem despótico. As reservas de água da cidade estão abaixo dos 20%, e este verão abafado parece a ambientação perfeita para uma desgraça num conto vagabundo, desses em que chove quando o protagonista sofre de amor.

De amor eu não sofro, mas trago o peito apertado. Nosso país está estranho, minha amiga. Coisas horrendas andam acontecendo e, em vez de as pessoas pensarem em como impedir que coisas horrendas aconteçam de novo, querem é infligir coisas horrendas a quem as infligiu. No fundo, o que exigem não é justiça nem mesmo vingança, mas o direito ao seu quinhãozinho de barbárie, como crianças que reclamam: "Por que ele pode brincar na gangorra e eu não?"; "Por que ele pode brincar de Gomorra e eu não?". Mais dia, menos dia, vou abrir o jornal e ver alguém defendendo o linchamento como uma forma de democracia direta.

Acho que você ia se sentir bem deslocada por aqui. Na atual estiagem, só o cinismo cresce, como os cactos. Faz sentido: a esperança não tem lugar nessa época que preza tanto a eficiência. A esperança é deficitária. Não é verdade que seja a última a morrer: morre todo dia, toda hora, em toda parte (para renascer, depois, noutro lugar), feito o amor de Paulo Mendes Campos. Já o cinismo é investimento seguro. Como pode se frustrar quem não deseja? O cínico está em paz -como os mortos.


Acho que por isso tudo, ontem, recorri ao Rubem Braga. Tenho-o sempre à mão, para emergências (quando minhas reservas de esperança descem abaixo dos 20%): vive ora na sala, ora na cabeceira da cama, ora na mesa da varanda, que é onde ele se sente mais à vontade, desfolhando-se ao vento. Pensando bem, talvez não seja o vento que desfolhe o livro, mas as páginas é que tentam, ingenuamente, abanar o mundo. Ai de nós, Rubem Braga. Ai de nós, Beatriz. Vocês fazem mais falta que a água neste escabroso verão.

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