Antonio Prata
Estiagem
Dia desses, vou abrir o jornal e
ver alguém defendendo o linchamento como uma forma de democracia direta
Ontem, por uma dessas
coincidências que não guardam nenhum sentido oculto, mas adicionam à vida uma
pitada de mistério, peguei para ler "Ai de ti, Copacabana" e, horas
depois, a caminho de uma reunião, passei em frente à nossa escola. Pois tenho a
infelicidade de te informar que aquele casarão e o pátio em que você me deu o
livro do Rubem Braga -o maior presente que já ganhei- agora jazem sob os 19
andares de um equívoco neoclássico chamado Beverly Hills Plaza, com quatro
vagas e oito colunas jônicas por andar -prova de que, mesmo 15 séculos após a
invasão dos Vândalos, segue em marcha o declínio do Império Romano.
Fiquei parado ali na calçada,
olhando pra cima, pensando que nada poderia estar mais distante das
pitangueiras e sabiás do Rubem Braga do que aquelas varandas raquíticas com
seus pinheirinhos em formação militar -pobres árvores de clima temperado,
vítimas do destempero paulistano em sua luta para anular os trópicos. Lembrei
dos recreios ensolarados do colegial, quando nos sentávamos no chão para jogar
truco. Se num daqueles recreios eu tivesse tentado te beijar, talvez minha
adolescência houvesse sido ensolarada também, mas eu era tímido, e a libido só
encontrava vazão no grito desastrado: "Truco, marreco!".
Usei solar como sinônimo de feliz
e me arrependo: ultimamente, o governo do Astro Rei tem sido bem despótico. As
reservas de água da cidade estão abaixo dos 20%, e este verão abafado parece a
ambientação perfeita para uma desgraça num conto vagabundo, desses em que chove
quando o protagonista sofre de amor.
De amor eu não sofro, mas trago o
peito apertado. Nosso país está estranho, minha amiga. Coisas horrendas andam
acontecendo e, em vez de as pessoas pensarem em como impedir que coisas
horrendas aconteçam de novo, querem é infligir coisas horrendas a quem as
infligiu. No fundo, o que exigem não é justiça nem mesmo vingança, mas o
direito ao seu quinhãozinho de barbárie, como crianças que reclamam: "Por
que ele pode brincar na gangorra e eu não?"; "Por que ele pode
brincar de Gomorra e eu não?". Mais dia, menos dia, vou abrir o jornal e
ver alguém defendendo o linchamento como uma forma de democracia direta.
Acho que você ia se sentir bem
deslocada por aqui. Na atual estiagem, só o cinismo cresce, como os cactos. Faz
sentido: a esperança não tem lugar nessa época que preza tanto a eficiência. A
esperança é deficitária. Não é verdade que seja a última a morrer: morre todo
dia, toda hora, em toda parte (para renascer, depois, noutro lugar), feito o
amor de Paulo Mendes Campos. Já o cinismo é investimento seguro. Como pode se
frustrar quem não deseja? O cínico está em paz -como os mortos.
Acho que por isso tudo, ontem,
recorri ao Rubem Braga. Tenho-o sempre à mão, para emergências (quando minhas
reservas de esperança descem abaixo dos 20%): vive ora na sala, ora na
cabeceira da cama, ora na mesa da varanda, que é onde ele se sente mais à
vontade, desfolhando-se ao vento. Pensando bem, talvez não seja o vento que
desfolhe o livro, mas as páginas é que tentam, ingenuamente, abanar o mundo. Ai
de nós, Rubem Braga. Ai de nós, Beatriz. Vocês fazem mais falta que a água
neste escabroso verão.
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