sábado, 15 de fevereiro de 2014

WALCYR CARRASCO
11/02/2014 07h00 - Atualizado em 11/02/2014 07h48
 
A história de um beijo

A redenção de Félix, com ajuda de Niko, me fez perceber ali um casal. Era preciso um beijo de amor

Muita gente pergunta sobre meu método para escrever. Sempre respondo: é o caos. Não tenho exatamente um método, escrevo de acordo com minha antena criativa. Que às vezes entorta, confesso. Em outras, ela entra numa sintonia fina, ideal para captar as emoções do público. Confesso: escrever o primeiro beijo gay entre dois homens da televisão brasileira não estava em meus planos originais. Eu pretendia, sim, contar a história de um personagem gay que queria ter uma família, filhos. Era Niko, vivido por Thiago Fragoso. Já achava atualíssimo colocar essa questão. Ouvi relatos de gays que tentam o método de fertilização artificial numa barriga solidária (ou de aluguel) para depois, quando a criança nasce, ter de lutar pela posse do filho. Durante a gravidez, a dona da barriga se apega ao bebê e não quer mais entregá-lo. Até porque, nesses casos, as leis não são claras.

Sou um autor que cria e recria a novela enquanto ela está no ar. Mudo a história. Para minha surpresa, o personagem de Félix (Mateus Solano), a bicha má, teve uma enorme aceitação desde o princípio. Venenoso, malvado, mas divertido, Félix caiu na graça dos telespectadores. Não é à toa que meu livro predileto é Os miseráveis, de Victor Hugo. Adoro histórias de redenção. Acredito que o ser humano pode se transformar. É linda essa capacidade de nos transformarmos em outra pessoa. Em minhas novelas, a questão da mudança pessoal aparece com frequência. Talvez porque eu mesmo tenha atravessado fases ruins na vida. Houve uma época em que eu era invejoso e amargurado. Superei essa fase por meio de grandes experiências pessoais. Só depois consegui construir uma carreira sólida como escritor. É como sempre digo, a amargura não ajuda ninguém.

A redenção de Félix, em parte proporcionada por Niko, me fez descobrir que lá havia um casal. Um casal com uma trama clássica de novela. Tanto que chegaram a dizer que Thiago Fragoso virou a heroína de Amor à vida. Todos morremos de rir, é claro. Thiago é um grande ator. Na vida pessoal, é casado, tipo pai de família, bem resolvido.

Ele se entregou, sim, ao papel. Isso não tirou de Paloma (Paolla Oliveira) e Bruno (Malvino Salvador) a importância como casal romântico, como as línguas mais ardentes andaram dizendo. Havia um grupo na internet que não suportava vê-los separados. Em todos os capítulos, cronometrava o tempo em que Paloma e Bruno apareciam em cenas de amor, para reclamar a mim se fosse pouco. Eu imaginava: “Se a cena começar com um beijo na cama e durar 20 minutos, aonde vou chegar?”. Com Paloma e Bruno resolvidos, Félix e Niko ocuparam boa parte do espaço romântico. Sou um autor honesto com minhas tramas. O desfecho usual de uma trama romântica é o beijo.

Mas não era uma decisão que eu poderia tomar sozinho. Coloquei a questão para a direção da TV Globo. Expliquei que sentia a necessidade do beijo, como resultado de uma relação. Muitas vezes me sinto muito orgulhoso de trabalhar na TV Globo, e essa foi uma dessas ocasiões. A Globo dá imensa liberdade ao autor. Muitas vezes saem notícias equivocadas, dizendo que a direção mandou fazer isso ou aquilo. É raríssimo. Só acontece quando, por exemplo, o autor cria uma trama que não está na sinopse e é, por coincidência, semelhante a outra que entrará no ar. No caso do beijo, não houve resistência. Só me perguntaram qual seria seu teor. Respondi:

– Será um beijo de amor.

Queria o beijo como algo que faz parte do cotidiano das pessoas. Não o beijo do gueto, com rapazes dançando de sunga ao fundo. Queria dizer que o beijo gay também pode fazer parte de uma vida familiar.

O diretor Mauro Mendonça Filho, o Maurinho, gravou várias versões, é claro. No dia do último capítulo, acordei, ai meu Deus, às 8 da manhã para assistir a elas. A decisão foi unânime. O beijo exibido foi escolhido por todos, Maurinho, Wolf Maya e eu, em conjunto. Foi um sucesso. Soube de prédios que gritavam como se fosse final de campeonato. No último capítulo, incluí também a apresentação de um recém-nascido numa igreja evangélica.


O mundo é para todos, e essa foi a mensagem que eu pretendia transmitir. Quis falar de aceitação. De convivência entre pessoas diferentes. Estou orgulhoso pela reação do público: há uma abertura de consciência no país. O brasileiro é bem melhor do que se fala. O beijo aconteceu, como pedia a trama de Amor à vida. Eu me sinto de alma lavada.

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