WALCYR CARRASCO
11/02/2014 07h00 - Atualizado em
11/02/2014 07h48
A história de um beijo
A redenção de Félix, com ajuda de
Niko, me fez perceber ali um casal. Era preciso um beijo de amor
Muita gente pergunta sobre meu
método para escrever. Sempre respondo: é o caos. Não tenho exatamente um
método, escrevo de acordo com minha antena criativa. Que às vezes entorta,
confesso. Em outras, ela entra numa sintonia fina, ideal para captar as emoções
do público. Confesso: escrever o primeiro beijo gay entre dois homens da
televisão brasileira não estava em meus planos originais. Eu pretendia, sim,
contar a história de um personagem gay que queria ter uma família, filhos. Era
Niko, vivido por Thiago Fragoso. Já achava atualíssimo colocar essa questão.
Ouvi relatos de gays que tentam o método de fertilização artificial numa
barriga solidária (ou de aluguel) para depois, quando a criança nasce, ter de
lutar pela posse do filho. Durante a gravidez, a dona da barriga se apega ao
bebê e não quer mais entregá-lo. Até porque, nesses casos, as leis não são
claras.
Sou um autor que cria e recria a
novela enquanto ela está no ar. Mudo a história. Para minha surpresa, o
personagem de Félix (Mateus Solano), a bicha má, teve uma enorme aceitação
desde o princípio. Venenoso, malvado, mas divertido, Félix caiu na graça dos
telespectadores. Não é à toa que meu livro predileto é Os miseráveis, de Victor
Hugo. Adoro histórias de redenção. Acredito que o ser humano pode se
transformar. É linda essa capacidade de nos transformarmos em outra pessoa. Em
minhas novelas, a questão da mudança pessoal aparece com frequência. Talvez
porque eu mesmo tenha atravessado fases ruins na vida. Houve uma época em que
eu era invejoso e amargurado. Superei essa fase por meio de grandes
experiências pessoais. Só depois consegui construir uma carreira sólida como
escritor. É como sempre digo, a amargura não ajuda ninguém.
A redenção de Félix, em parte
proporcionada por Niko, me fez descobrir que lá havia um casal. Um casal com
uma trama clássica de novela. Tanto que chegaram a dizer que Thiago Fragoso
virou a heroína de Amor à vida. Todos morremos de rir, é claro. Thiago é um
grande ator. Na vida pessoal, é casado, tipo pai de família, bem resolvido.
Ele se entregou, sim, ao papel.
Isso não tirou de Paloma (Paolla Oliveira) e Bruno (Malvino Salvador) a
importância como casal romântico, como as línguas mais ardentes andaram
dizendo. Havia um grupo na internet que não suportava vê-los separados. Em
todos os capítulos, cronometrava o tempo em que Paloma e Bruno apareciam em
cenas de amor, para reclamar a mim se fosse pouco. Eu imaginava: “Se a cena
começar com um beijo na cama e durar 20 minutos, aonde vou chegar?”. Com Paloma
e Bruno resolvidos, Félix e Niko ocuparam boa parte do espaço romântico. Sou um
autor honesto com minhas tramas. O desfecho usual de uma trama romântica é o
beijo.
Mas não era uma decisão que eu
poderia tomar sozinho. Coloquei a questão para a direção da TV Globo. Expliquei
que sentia a necessidade do beijo, como resultado de uma relação. Muitas vezes
me sinto muito orgulhoso de trabalhar na TV Globo, e essa foi uma dessas
ocasiões. A Globo dá imensa liberdade ao autor. Muitas vezes saem notícias
equivocadas, dizendo que a direção mandou fazer isso ou aquilo. É raríssimo. Só
acontece quando, por exemplo, o autor cria uma trama que não está na sinopse e
é, por coincidência, semelhante a outra que entrará no ar. No caso do beijo,
não houve resistência. Só me perguntaram qual seria seu teor. Respondi:
– Será um beijo de amor.
Queria o beijo como algo que faz
parte do cotidiano das pessoas. Não o beijo do gueto, com rapazes dançando de
sunga ao fundo. Queria dizer que o beijo gay também pode fazer parte de uma
vida familiar.
O diretor Mauro Mendonça Filho, o
Maurinho, gravou várias versões, é claro. No dia do último capítulo, acordei,
ai meu Deus, às 8 da manhã para assistir a elas. A decisão foi unânime. O beijo
exibido foi escolhido por todos, Maurinho, Wolf Maya e eu, em conjunto. Foi um
sucesso. Soube de prédios que gritavam como se fosse final de campeonato. No
último capítulo, incluí também a apresentação de um recém-nascido numa igreja
evangélica.
O mundo é para todos, e essa foi
a mensagem que eu pretendia transmitir. Quis falar de aceitação. De convivência
entre pessoas diferentes. Estou orgulhoso pela reação do público: há uma
abertura de consciência no país. O brasileiro é bem melhor do que se fala. O
beijo aconteceu, como pedia a trama de Amor à vida. Eu me sinto de alma lavada.
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