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sábado, 6 de dezembro de 2008
07 de dezembro de 2008
N° 15812 - MOACYR SCLIAR
Negro de óculos
A discussão sobre cotas está de volta (esses dias, na tevê, os ex-ministros da Educação Paulo Renato e Cristovam Buarque debateram a respeito) e, independente das opiniões discordantes – o assunto é mesmo polêmico – tem um mérito: obriga-nos a examinar a questão do racismo na sociedade brasileira.
O que me faz lembrar um curioso costume de minha infância, uma espécie de competição entre garotos.
Dupla competição, dentro do grupo e também de cada um contra si próprio. O jogo consistia em colecionar mentalmente finais de placas de automóveis. A gente começava pelo zero, depois vinha o um, o dois, o três e assim por diante, até o cem. O notável é que ninguém, a não ser o nosso superego, fiscalizava esta atividade.
E, entre nós, mantínhamos uma espécie de lúdico pacto de honra, essas coisas que são raras na vida adulta. Havia, no processo de coletar os números, um curioso detalhe, uma intrigante punição: mesmo que tivéssemos chegado, digamos, ao noventa e nove, teríamos de voltar ao início, ao zero – caso encontrássemos um negro de óculos.
Por que um negro de óculos? Em primeiro lugar, por causa do racismo, por causa do estigma que representava, e representa, a cor negra da pele. Não era esta, contudo, a única razão. Afinal, é praticamente impossível andar por uma cidade brasileira sem encontrar negros. Mas havia o detalhe: negro de óculos.
O que era uma coisa rara. E por que era rara? Não é difícil deduzir a razão. Negros quase não usavam óculos. Pobres como eram, e são, não dispunham de dinheiro para isso. Além disso, não teriam, ao menos segundo o raciocínio corrente, motivos para usar óculos. Não freqüentavam escolas; muitos deles eram analfabetos. Ou seja: negro de óculos era exceção.
E uma exceção ominosa, suficientemente ameaçadora para ser interpretada como um risco para o nosso jogo dos números. Se os negros começassem a usar óculos, o que aconteceria?
Uma subversão completa dos valores então vigentes. Logo estariam freqüentando colégios, quem sabe até universidades.
O que seria um espanto, para dizer o mínimo. Na Faculdade de Medicina da UFRGS, que cursei, o número de alunos negros dava para contar nos dedos de uma mão; havia um professor (assistente) negro, mas ele era completa exceção.
Atribuía-se a um diretor da faculdade um a frase que dá a medida do preconceito então reinante: “Negro, nesta faculdade, só o telefone”.
Naquela época, e isto também é significativo, os telefones – de quem se esperava fossem obedientes servidores, eram obrigatoriamente pretos.
Tem-se afirmado que, com a eleição de Obama (que não usa óculos), chegamos à uma fase pós-racial da História, também anunciada pela diversificação de cores dos telefones. Tomara que seja verdade. Tomara que não tenhamos de voltar para o zero.
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