domingo, 28 de dezembro de 2008



28 de dezembro de 2008
N° 15832 - PAULO SANT’ANA


Doe seus órgãos

Pensando bem, nós somos uns heróis. Estamos deixando para trás 2008 e permanecemos intactos, na trincheira, na luta pela vida.

Sobrevivemos aos assaltos, à aids, às drogas espalhadas por toda a nossa volta, aos presídios à míngua de recursos para os presos, o que impede que se mande para dentro das cadeias gente que insiste em assaltar cada vez mais, à alta violenta do dólar, à queda violenta de mais de 70% no preço internacional do petróleo sem nenhuma queda no preço que se paga pelos combustíveis nas bombas, o que é inexplicável, ainda mais sabendo-se que os países vizinhos ao Brasil mantêm preços bem mais baixos do que os nossos para a gasolina.

Sobrevivemos aos pedágios, somos um povo heróico. Pagamos cerca de R$ 1 mil por uma carteira de motorista, preço inédito em todo o mundo, nem sei como os motoristas profissionais que querem se iniciar em seus ofícios conseguem resistir a este preço, uma extorsão inominável até para os motoristas amadores.

Pagamos a gasolina mais cara do mundo e a carteira de motorista mais cara do mundo, os juros nossos são os mais altos do mundo, ou os segundos mais altos do mundo, e o povo brasileiro continua bravamente comprando a crédito a sua habitação, o seu carro, a televisão. Nem sei como essa gente estóica resiste a tantos preços altos, no caso dos juros altíssimos por longos meses e anos, que é esse o tempo que o povo pobre leva para comprar a sua televisão, a sua máquina de lavar roupa, o seu fogão, em intermináveis e perversas prestações.

Mas nos salvamos, vamos entrar 2009 sobreviventes, principalmente os mais pobres, de preços desumanos nas passagens de ônibus. Passagens que o povão paga todos os dias, às vezes quatro passagens por dia, para se deslocar de casa para o serviço ou de casa para procurar emprego. Sem falar nas passagens de ônibus intermunicipais e interestaduais, que custam aqui no Brasil de três a quatro vezes mais que no Uruguai, isso que o salário mínimo no Uruguai é muito maior que o do Brasil.

Somos sobreviventes, o que me espanta, de filas intermináveis no SUS para as consultas e para as cirurgias.

Muitos morreram nessas filas, mas nós sobrevivemos.

Somos sobreviventes, incrivelmente, de pessoas que estão morrendo nas filas de transplante, basicamente porque os vivos, quando ainda vivos, se omitem lamentavelmente ao não doar os seus órgãos.

Muita gente está morrendo – e me chegam as notícias todos os dias – porque não são doados fígados, a fila do transplante de fígado e de outros órgãos é dramática e se torna cruciante para os maridos, para os pais e para os filhos dos candidatos a transplante, que a medicina esteja apta a transplantar todos os órgãos necessários, mas não há órgãos, porque nós não nos inscrevemos para sermos doadores.

Esta é uma das maiores perversidades a que nós sobrevivemos. Porque os acidentes de trânsito estão todos os dias matando gente nas estradas e nas ruas, e os órgãos desses mortos não são transplantados por insensibilidade nossa. Eu diria crime nosso. O nosso mais deplorável desperdício.

Como é que não nos organizamos ainda, incrivelmente, para abastecer de órgãos os hospitais de transplante, morrendo os da fila à míngua, sem esperança, sabendo que vão morrer porque inacreditavelmente não conseguimos ainda derrubar a muralha da omissão em doar órgãos.

Pelo amor de Deus, meus leitores, doem seus órgãos. Milhares de pessoas morrem por não haver órgãos para serem transplantados.

É uma morte seca, acompanhada de uma agonia física e psicológica irresistível.

Pelo amor de Deus, gaúchos, doem seus órgãos. Não imaginam o calvário que passam os que estão na fila do transplante e seus parentes! Que calvário! E que fim que causa remorso perpétuo!

E assim vamos sobrevivendo a tantos infortúnios, que sei agora por que o brasileiro não se assusta com essa crise econômico-financeira que se anuncia: quem passa por tudo isso que passamos e permanece vivo – e lutando –, pronto para viver 2009, não tem medo de crise nenhuma.

Qualquer crise que vier será só uma, em seguida vai passar.

E os obstáculos que se antepõem às nossas vidas são múltiplos. E nós ultrapassamos até agora todos eles.

Somos destemidos e lendários sobreviventes.

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