sexta-feira, 19 de dezembro de 2008



19 de dezembro de 2008
N° 15824 - DAVID COIMBRA


Eu

Associações, congregações, confrarias, clubes e quejandos sempre me pareceram um pouco ridículos. Não muito; um pouco, só. Aquelas pessoas todas se movimentando em bloco. Alguém diz o que elas têm de fazer e elas fazem. Claro, se os outros querem agir desta forma, tudo bem. Para mim é algo quase insuportável.

As pessoas da minha família. Não gosto delas porque são da minha família. Gosto delas, ponto. Gosto de uma por uma. Pelo que cada uma é, não por obrigação de parentesco, não pelo sobrenome.

Tampouco sou entusiasta de nacionalismos, patriotismos ou bairrismos. Se há algo que me irrita é esperarem de mim comportamento de grupo. Qualquer grupo.

Ninguém tem nada a ver com o que faço, se o que fizer não afetar ninguém. Eu mesmo quero escolher as responsabilidades que vão me escravizar. Não abro mão de cometer erros através do meu próprio julgamento equivocado. Não gosto de me submeter a liturgias, solenidades me cansam e hierarquias são quase sempre risíveis. A grande conquista da democracia não foram bons governos; geralmente a democracia gera governos medíocres. A grande conquista da democracia foi a liberdade do indivíduo.

É por isso que fiquei eufórico com a história do jornalista iraquiano que atirou os sapatos no Bush. Euforia. Foi exatamente isso o que senti. Porque a ação do jornalista foi um gesto individual. Um homem, sozinho, contra uma instituição. Pois o presidente dos Estados Unidos é uma instituição, e poderosa como poucas.

Então lá estava aquele repórter solitário, sem nenhuma outra arma que não os sapatos que calçava, diante do homem que ocupa o cargo mais importante do mundo, cercado pelos seguranças mais alertas, mais profissionais, mais furiosos do mundo. E ele não se intimidou. Não se acovardou. Disparou uma sapatada no presidente americano aos olhos do planeta inteiro.

Fiquei imaginando o que todos os poderosos da Terra sentiram ao ver aquela sapatada. Todos eles, os grandes e os nem tanto. Empresários que oprimem seus funcionários, juízes de direito que pronunciam sentenças iníquas, jornalistas prepotentes, médicos arrogantes e também assaltantes que dominam suas vítimas sob a mira de uma arma, ou vândalos que atacam transeuntes indefesos e os espancam para lhes roubar os tênis, todos esses, cuidado! Alguém pode lhes atirar um sapato na cara.

Cuidado, todos vocês que representam o status quo ou entidades ou instituições ou quaisquer grupos com quaisquer fins. Cuidado! Porque alguém, um cidadão comum, desses que passam pela rua sobraçando sacolas, que carregam fichinhas de ônibus nos bolsos e vestem camiseta de propaganda de magazine, um desses pode tirar o sapato e jogá-lo ao pé da sua orelha.

É isso que esse jornalista fez. É isso que me deixou eufórico. Ele mostrou que o indivíduo pode, sozinho, ir lá e afrontar um poderoso, e tirar uma lasca do seu orgulho. Ele decidiu. Ele fez. Com sua cabeça, com suas mãos, usando tão-somente os sapatos que lhe protegiam os pés. Não pertencia a qualquer grupo, não estava ali como sócio de nenhum clube, não representava uma família, um país ou um partido. Um homem só, nada mais.

Essa é a eterna verdade: o espírito de um único homem, se o que lhe move é a liberdade, torna-se um espírito invencível.

Nenhum comentário: