sábado, 13 de dezembro de 2008



13 de dezembro de 2008
N° 15818 - CLÁUDIA LAITANO


A mãe de Capitu

Lygia Fagundes Telles fez sua primeira leitura de Dom Casmurro (1899) quando era estudante de Direito, nos anos 40. À jovem aspirante a escritora, Bentinho causou forte impressão negativa.

O narrador da obra-prima de Machado de Assis lhe pareceu um sujeito histérico, um doido varrido obcecado pela idéia de uma traição que não houve. Capitu, por sua vez, era uma vítima perplexa e impotente do ciúme do marido – a voz que dá sua própria versão dos fatos no romance.

Lygia voltou a ler o romance de Machado para escrever o roteiro do filme Capitu (1968), de Paulo César Saraceni – primeira versão cinematográfica do livro que os telespectadores viram adaptado de forma feérica e arrebatadora na minissérie Capitu, que foi ao ar esta semana pela RBS TV.

Na leitura da maturidade, a escritora paulista mudou de idéia a respeito dos personagens. Capitu havia, sim, traído Bentinho, e o filho que ela leva para a Europa é mesmo do amante.

Em uma entrevista publicada no começo deste ano, o repórter do jornal O Estado de S. Paulo quis saber qual o veredicto da escritora, agora octogenária, sobre o caráter de Capitu: “Eu já não sei mais. Minha última versão é essa, não sei. Acho que enfim suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; na segunda, um monstro. Agora, na velhice, eu não sei”.

As diferentes leituras de Lygia Fagundes Telles ao longo dos últimos 60 anos ilustram a riqueza escondida nas sutilezas do romance, mas vão de certa forma na contracorrente da crítica machadiana. No momento em que a jovem escritora via em Capitu a vítima de um ciúme irracional e potencialmente violento, críticos e leitores comuns iam no máximo até a possibilidade da dúvida – o romance não autorizaria nem uma versão nem outra, ou seja, nem a da santa nem a da bruxa.

Em 1960, o ensaio de uma professora americana mudaria para sempre a leitura de Dom Casmurro, influenciando críticos como o brasileiro Roberto Schwarz (responsável ele próprio por outra guinada na crítica machadiana) e o inglês John Gledson. Helen Caldwell (1904 – 1987) é, em certo sentido, a “mãe” da moderna Capitu, que nasce no livro O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, surpreendentemente nunca traduzido para o português até ser publicado pela Ateliê Editorial, em 2002.

Capitu, argumenta a ensaísta, é tão inocente quanto Desdêmona, enquanto Bento Santiago, o Bentinho, condensa as fraquezas e os ardis de Otelo e Iago – inclusive no nome.

O livro de Helen Caldwell honra, de todas as formas possíveis, o livro de Machado de Assis – e não apenas por referir-se a ele como “o maior de todos os romances do continente americano”. Buscando responder basicamente a duas grandes questões a respeito de Dom Casmurro, “a heroína é culpada de adultério?” e “por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para decisão do leitor?”,

a autora compôs um ensaio crítico que se lê com o prazer de um livro policial erudito – em que pistas espalhadas pelo escritor ao longo de toda sua obra (inclusive como poeta e cronista) são investigadas.

Helen foi lida por parte da crítica como uma autora protofeminista – o que talvez explique a tradução brasileira tardia, mas não é justo com a reverência à profundidade psicológica da obra de Machado de Assis que ela demonstra.

Para Lygia Fagundes Telles, importa menos saber se Capitu era santa ou monstro do que saborear o prazer da dúvida – artifício que em si só já demonstraria a genialidade do autor.

O que Helen Caldwell fez foi mostrar que o gênio poderia ser ainda mais sofisticado do que os críticos e os leitores imaginaram nos primeiros 60 anos do livro.

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