quarta-feira, 10 de dezembro de 2008



10 de dezembro de 2008
N° 15815 - PAULO SANT’ANA


Vítima condenada


Estou simplesmente apavorado com o linchamento moral a que está sendo submetido o cadáver do médico oftalmologista Marco Antonio Becker.

Todos os dias, uma série de emissoras de rádio e televisão, aliada à poderosa teia de boatos e cochichos que pesponta diariamente intrigas sobre a vida pregressa do assassinado, prolata um auto farto de presumidos defeitos e prováveis perversidades morais e comportamentais da vítima, com fúria duplamente homicida.

Li que a polícia pediu autorização à Justiça para proceder à quebra de sigilo telefônico e de correspondência do médico que foi assassinado na semana passada às margens do Restaurante Alfredo, na Rua Ramiro Barcelos.

Pois, se o morto tem direito ao sigilo telefônico, que só pode ser violado por decisão da Justiça, deveria também ter o direito à privacidade, automaticamente estendido à sua memória.

No entanto, nos romances de Sir Arthur Conan Doyle, de Agatha Christie e de Georges Simenon, nota-se a tendência da investigação criminal em dedicar-se inicialmente, nos homicídios de autoria desconhecida, a vasculhar a vida da vítima.

Tecnicamente perfeito. Só que os resultados obtidos na vivissecção investigatória dos hábitos da vítima, quando desfavoráveis a ela, se lançados ao campo fértil da imaginação da opinião pública, se transformam em libelo violento contra a memória do morto.

Se não há o que dizer do caráter dos criminosos, eis que sua identidade não é conhecida, então lança-se a opinião pública à compulsiva investigação necroscópica da vida pregressa da vítima.

E todas as ilações possíveis são feitas sobre o proceder do assassinado antes de morrer.

Como todas as pessoas possuem defeitos, os da vítima são geometrizados, sua reputação dança de boca em boca e acaba tendo seu retrato pintado como um monstro.

Assim está sendo feito com a memória do Dr. Marco Antonio Becker. Na marcha em que vai o desfile de defeitos da vítima, os dois assassinos da motocicleta, depois de ler os jornais, ouvir as rádios e os boatos entre o povaréu todas as manhãs, devem assim concluir: “Olhem, até que prestamos um relevante serviço à sociedade”.

Arrolam-se tantos defeitos à personalidade do Dr. Becker, que, no ritmo que vão as “descobertas” dos seus vícios ou pretensos desvios, os assassinos em breve vão receber o título de Cidadão de Porto Alegre, em comenda da Câmara.

O certo seria que o arrolamento dos hábitos da vítima interessasse somente às investigações da autoria do crime.

Espalhados à famélica boataria das multidões, estamos diante apenas de mais um caso em que os criminosos ainda não são conhecidos, mas a vítima já resta para sempre condenada.

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