terça-feira, 30 de dezembro de 2008



30 de dezembro de 2008
N° 15834 - MOACYR SCLIAR


Cuba: sim, mas…

Em 2003 fui a Cuba como jurado do Casa de las Américas, um prêmio literário referendado pela longa duração e pela consistência (“O critério é a qualidade, não a posição ideológica do autor”, disse-nos Roberto Retamar, o presidente da Casa, na primeira reunião).

Fiquei em Cuba duas semanas, e nesse período tratei de observar, e de anotar, o que eu podia acerca do cotidiano cubano – cheguei a acompanhar um médico no seu trabalho por um dia inteiro. Na volta, escrevi para ZH três matérias. Nelas, busquei a maior neutralidade possível, mostrando, de forma objetiva, o que tinha visto de bom e o que tinha visto de ruim.

Recebi uma enxurrada de e-mails, muitos comentando os textos com isenção, mas alguns baixando a lenha. Estes, por sua vez, podiam ser divididos em dois grupos: o grupo que me criticava por ser esquerdista e partidário da Revolução Cubana e o grupo que, ao contrário, me acusava de reacionário e de inimigo da Revolução Cubana.

Ambos os grupos usavam o raciocínio “sim, mas”. Sim, a Revolução Cubana desenvolveu uma rede de proteção social; mas esta mesma Revolução perseguiu, prendeu e fuzilou muita gente. Sim, a imprensa livre tal como praticada no Ocidente não existe em Cuba; mas toda a população tem direito a educação.

Sim, Cuba tem uma mortalidade infantil muito baixa; mas o sistema de saúde tem enormes carências. Sim, Cuba restringe a liberdade de expressão; mas isto porque se trata de um país ameaçado pelos Estados Unidos, e aí está o bloqueio para comprová-lo.

A lista dos “sim, mas”, que poderia se prolongar de forma quilométrica, é a forma preferencial de discutir o que acontece na ilha do Caribe. Com este tipo de argumentação, ideal para um bate-boca, não se chega jamais a conclusão alguma; não se pode responder à pergunta decisiva: agora que a Revolução Cubana completa meio século, o saldo é positivo ou negativo?

Aliás, o próprio aniversário já enseja pontos de vista diversos, dentro do raciocínio “sim, mas”: sim, o regime tem problemas, mas se já dura meio século é porque funciona. Resposta dos adversários: sim, o regime completou 50 anos, mas duração não quer dizer nada, tem muito ditador que ficou décadas no poder.

O raciocínio “sim, mas” não resolve. Ele é claramente parcial. O “sim” representa uma admissão relutante; o adversativo “mas” é a oposição supostamente triunfante. Cada pessoa usará o “sim” e o “mas” de acordo com sua posição ideológica. O que fazer para, ao menos, tentar chegar à verdade?

Primeira providência: substituir o “sim, mas” por um simples “e”. Cuba tem um sistema de proteção social, tem uma abrangente rede educacional, tem baixa mortalidade infantil; e Cuba tem também restrições à liberdade de imprensa, tem prisões para os inimigos políticos, tem um governo que está há 50 anos no poder. As coisas não se excluem.

Claro, esta simples admissão da coexistência de fatos não resolve o problema – por causa do juízo de valores. Alguém dirá: não importa que as pessoas não tenham completa liberdade, se elas têm comida garantida. Outro responderá: de que adianta ter comida garantida, se a pessoa não tem completa liberdade? Depende do que a pessoa valoriza mais, se a liberdade ou a comida.

Para nós, isto é basicamente uma discussão – importante discussão, mas discussão à distância, num bar ou numa mesa de jantar. Quem precisa julgar os prós e os contras do regime são os cubanos. Neste sentido, a velha democracia, com todos os seus defeitos, ainda é a melhor solução.

É importante, portanto, remover aquilo que serve de obstáculo, ou de pretexto, para a democratizaçao do país. Nesta lista, o absurdo bloqueio promovido pelos Estados Unidos está em primeiro lugar. Obama já declarou que está disposto a revê-lo. É um passo ousado, mas em política é preciso ousar.

A Revolução Cubana nasceu de um sonho de jovens que lutavam contra um governo ditatorial. Porém, como costuma acontecer, o choque brutal com uma realidade não raro hostil às vezes transforma os sonhos no contrário daquilo que representavam.

Isto foi o que aconteceu em Cuba. Só podemos desejar que o novo governo cubano recupere os ideais de 1959. Que o sonho volte a ser sonho.

E falando em sonho: que 2009 nos permita, no mínimo, continuar sonhando. Feliz Ano-Novo, leitores.

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