segunda-feira, 29 de dezembro de 2008



29 de dezembro de 2008
N° 15833 - PAULO SANT’ANA | MARCELO RECH (interino)

Prazeres perdidos

Por favor, olhe de novo ali em cima. Ocupa este espaço aqui o primeiro dos interinos de Paulo Sant’Ana durante as suas mais que merecidas férias. E ao fim de um ano, estréio o inquilinato com uma contabilidade de prazeres passados que, a exemplo de 2008 e do acento em estréio, não voltarão mais.

Por razões óbvias, encabeça minha relação publicada nesta coluna emprestada por Pablo um prazer cada vez mais solitário e, com toda a razão, me desculpe Sant’Ana, rejeitado pela sociedade.

Fumar – Faz um mal desgraçado, não se tenha dúvida. Mas amaldiçoar o cigarro não o apaga e nem a memória da fumaça invadindo o pulmão, ou da nicotina entorpecendo os nervos para aplacar a vontade.

Quem fumou por muitos anos (no meu caso, parei há nove anos, quatro meses, 12 dias, sete horas e 14 minutos) sabe quão prazeroso era ver a brasa ardendo a cada tragada.

Claro, não vamos recordar aqui da tosse, da pele amarelada, dos dedos manchados, da perda de paladar, da falta de ar, da ameaça de enfisema, câncer... Foi bom, quero dizer, foi ruim. Acabou, finito. Fumar hoje é coisa de pária, de quem se dispõe a ser escorraçado de ambientes com ar puro para se enfurnar em saletas fedorentas e saciar sua sanha. Coisa feia. Xô.

Fumar em avião – Sei, você não era fumante e tinha vontade de atirar pela saída de emergência, a 33 mil pés, aquele sujeito que se embevecia com a brasa ao seu lado. Mas se você fumou em avião sabe no que se convertia aquele fundão assim que se apagava a luzinha com a figura do cigarro proibido.

Era uma sólida nuvem de fumaça a unir uma tribo que tinha vontade de uivar quando o fumacê era acompanhado por um uísque e jornal de graça. Never more, em nome da civilidade e da saúde.

Ovo frito – Esse o Luis Fernando Verissimo já içou há muito tempo ao topo dos prazeres perdidos, mas seguirá pela eternidade como um clássico. Aquela gema escorrendo pela gelatina branca da clara e se esparramando pelo prato à espera de macular a alvura do pão é uma cena de arrancar lágrimas de saudade.

Restou, é claro, a clara. Isso se você não se importar com a fritura ou com algo que ainda vão acusar nas manchinhas queimadas da insossa clara frita.

Reunião familiar para ver TV – Não tinha MP3, videogame, DVD, banda larga e nem 134 canais ou telas nos quartos e na cozinha. Era quase como assistir a uma fogueira. Programação de dois ou três canais na única TV no lugar de honra da sala. Zero opção, mas era um momento de união da família, que ria e chorava das mesmas coisas.

Agora, um amigo meu que quer conversar com os filhos adolescentes e a mulher está planejando uma lan house para sua sala. Pensa em colocar ali umas baias, uns computadores, monitores de TV LCD e ligar tudo em rede. Conexão familiar do futuro.

Passear à noite – Antes do toque de recolher, seres humanos que habitaram estas terras no passado caminhavam pelas ruas depois que o sol se punha. No verão, davam voltas na quadra após o jantar e respiravam o ar fresco da noite.

Encontravam vizinhos e conversavam nos portões por horas a fio. As balas perdidas eram entregues às crianças, para alegrar os pequenos. Ok, eu sei, não chore. Foi bom, mas esse é um prazer que não podemos dar por perdido para sempre. Só estamos momentaneamente exilados. Um dia voltaremos a pisar nosso solo.

Vigiar o mercado – Mesmo que você não tivesse um tostão furado aplicado, reconfortava ver as ações subindo e o dólar caindo. Esse era o Brasil que seguia para a frente e para o alto, com desemprego em queda e investimentos externos em massa. Íamos flutuar numa nuvem de fartura, mas devíamos ter desconfiado quando a manteiga belga passou a freqüentar a prateleira dos supermercados.

Você tinha seu FGTS aplicado em ações da Vale ou da Petrobras e não vendeu lá atrás? Ninguém vendeu. Não há por que se lamentar pela manteiga importada. A luxúria e a lascívia financeiras foram a Sodoma e Gomorra do planeta. A chuva de fogo que cai agora sobre todos há de redimir os mercados.

Revelar filme – A gente clica cem fotos por dia de férias e não paga nada a mais. Mas perdemos o prazer de escolher cuidadosamente a cena, selecionar com esmero o enquadramento para não torrar filme e de pagar o mico de pedir “digam cheese”.

Depois, era passar na lojinha de fotografia, esperar ansiosamente alguns dias e não agüentar até chegar em casa para abrir o envelope e descobrir que, bem, algumas fotos tinham ficado desfocadas e escuras mas outras haviam se salvado para o álbum. Sumiu o negativo. Sumiram também muitas lojinhas. Só ficou a expressão “queimar o filme”.

Cavar buraco na praia – Caminhe pela beira da praia e você ainda topará com alguns esquadrões de pais e filhos cavoucando na areia, na torcida por encontrar água e dar início aos reservatórios onde nadarão tatuíras por amestrar.

Os cavadores são os heróis da resistência do movimento dos esburacadores, a última barreira contra a sujeira na areia e a ofensiva dos camelôs das ondas, dos vendedores de óculos, saídas de praia, queijo derretido, castanhas, paella (paella por enquanto não?). Atenção, cavoucadores das águas salgadas. Não abandonem de vez esse prazer paterno-infantil com receio de serem pisoteados pelos vendedores da beira de praia. Esse é nosso território. Não o cederemos sem combate.

Comprar algo diferente no Exterior – Sim, crianças, já houve um tempo em que quando um parente melhor de vida viajava ao Exterior trazia-nos presentes das mil e uma noites, brinquedos e novidades nunca antes sonhados no Brasil.

Ir para fora era a chance de comprar coisas diferentes, de se surpreender com roupas, suvenires e outros objetos impensáveis. Acabou. Tudo agora é Made in China mesmo.

Não há nada para pôr na bagagem em San Francisco que já não esteja à venda nas ruas de São Paulo a Capão da Canoa, provavelmente por preço mais baixo. Melhor assim. Agora quando se viaja, a diversão está em se trazer recordações, experiências e imagens únicas.

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