sexta-feira, 26 de dezembro de 2008



26 de dezembro de 2008
N° 15830 - DAVID COIMBRA


Manual do Escoteiro

Tinha sete anos de idade quando comprei meu primeiro livro, com meu próprio dinheiro. Não foi fruto de mesada ou doação familiar. Foi produto de trabalho duro – confeccionei e comercializei picolés de K-Suco, catei jornais antigos e garrafas na vizinhança e os vendi para o ferro-velho.

Fiz isso tudo com um objetivo definido, não pelo dinheiro em si. É que queria, precisava comprar o Manual do Escoteiro-Mirim, da Abril Cultural. Quem já leu um gibi da Disney sabe do que se trata: o manual que Huguinho, Zezinho e Luizinho, os sobrinhos do Pato Donald, consultam sempre que enfrentam uma contingência.

Qualquer contingência, desde como encontrar o antídoto para os cogumelos venenosos da Austrália até a melhor forma de evitar a picada da terrível tse-tsé, a mosca do sono. Pois comprei o manual e o li e o reli inteiro, várias vezes.

Nos meses seguintes, a editora lançou outros manuais baseados nos personagens da Disney. Do Mickey, sobre mistérios e detetives; da Maga Patalógica e da Madame Min, sobre mágicas; do Zé Carioca, sobre futebol. Dez ao todo, num intervalo de mais ou menos três anos. Comprei-os, era uma necessidade comprá-los e lê-los e tê-los comigo. Minha estratégia não mudou: picolés de K-Suco, garrafas e jornais.

Sentia o maior orgulho da minha coleção. Minha mãe permitia que ocupasse lugar de honra na sala do pequeno apartamento em que morávamos, na Assis Brasil.

Bem.

Um dia aconteceu o seguinte: entramos no apartamento, eu, minha mãe e meus irmãos, e os meus livros... não estavam lá! Haviam sumido! Alguém os roubara. Desatei no choro mais desesperado que um menino de 10 anos pode chorar.

Minha mãe, no entanto, logo desvendou o crime: alguém invadira o apartamento pela janela da sala, que dava para uma pequena área, que dava para outra área, de outro apartamento. Sem um minuto de hesitação, ela saiu de casa, marchou pelo corredor do edifício e bateu na porta do vizinho, que tinha um casal de filhos. A mãe dos garotos atendeu. Minha mãe:

– Um dos teus filhos entrou na minha casa e roubou os livros do meu filho.

Dez minutos depois, a coleção de manuais estava comigo de novo e comigo ainda está, na pequena biblioteca que montei em casa. Com uma exceção: meu primeiro livro, o Manual do Escoteiro-Mirim, eu o perdi nestes anos todos. Como sumiu, não sei. Sumiu, Só. E é uma dor.

Mas, naquele dia, minha mãe recuperou a coleção completa. Durante algum tempo senti raiva dos ladrões-mirins. Considerava-os uns malditos ambiciosos e desonestos. Depois, quando nos mudamos, pensava neles até com alguma admiração: eram ladrões de livros, afinal.

Não se pode dizer que não fosse um delito nobre. Hoje sei que não foi nem uma coisa nem outra. Os amiguinhos do alheio que me tomaram a coleção não fizeram isso porque amassem os livros: era porque eu, e não eles, os valorizava. Um sentimento de viés que faz alguém desejar algo não porque realmente deseja, mas porque o outro deseja.

O prazer de ter nas mãos algo que as outras pessoas querem. Prazer que, às vezes, se transforma na ânsia de sabotagem. Alguém quer muito fazer algo e a outra pessoa vai lá e impede. Por que ela faz isso? Para sentir que tem o poder de roubar do outro a realização.

Não é esse o sentimento que motiva tanta gente neste nosso Rio Grande amado a fazer oposição sistemática a qualquer projeto, a qualquer governo, a qualquer empreendimento? Dificilmente se vê gente tentando ajudar.

O que se vê é gente tentando solapar. Nestes finais de ano fala-se tanto em boa vontade. Eis um desejo útil para a Humanidade e, em especial, para esse naco meridional do Brasil: boa vontade. Um pouco de boa vontade já basta para 2009 ser, pelo menos, um ano razoável”.

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