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terça-feira, 23 de dezembro de 2008
23 de dezembro de 2008
N° 15828 - PAULO SANT’ANA
Os sobreviventes
Estava eu esperando, como sempre faço há muitos anos, a hora da minha entrada no Jornal do Almoço, quando anunciaram um músico e cantor nativista: João Chagas Leite.
Fiquei vendo e ouvindo ele dedilhar o violão e cantar a sua música. Mais atentamente notei uma anormalidade na sua mão direita: ele simplesmente não tinha mão.
Perguntei o que lhe tinha acontecido e ele me disse que nascera assim, só as unhas da mão direita e um toquinho do dedão.
Mas como é que podia tocar violão aquele homem sem mão? Como é que ele conseguira segurar o braço do violão com a sua mão direita e dedilhar as seis cordas com aquele toquinho de dedão esquerdo?
Ele me disse também que já gravou 13 CDs. Mas que força extraordinária levou este homem descontado fisicamente a dar a volta por cima e se tornar um artista reconhecido no meio nativista?
Parece que estou vendo, ele foi levando a vida em frente, nunca deve ter se queixado do destino, a vida lhe deu um limão e ele fez uma limonada.
São uns heróis estes sobreviventes. Lembro-me de um pensamento magistral de um grande autor: “Não importa o que fizeram de nós, importa o que nós fizemos do que fizeram de nós”.
Aquele cantor e violonista de sucesso é bem um exemplo de que muitas vezes a vida nos tira algo, mas não nos tira a essência. E o que importa é essa essência, com ela recobraremos tudo que possa nos ter sido tirado.
Dali a pouco, enquanto não chegava a hora de eu falar no programa, a Rosane Marchetti entrevistou um jovem bombeiro que tinha sido resgatado com vida de um salvamento de que participara no Vale do Itajaí, durante as chuvas que provocaram aquela tragédia.
Ele há poucos dias conheceu a morte de perto, soterrado enquanto salvava pessoas dos deslizamentos.
Viveu instantes em que imaginou talvez que não fossem resgatá-lo. Mas resistiu e acabou salvo. Estava agora sendo entrevistado e me surpreendeu o que disse: “Agora não faço mais planos, não penso no futuro, agora só quero viver”.
Interessante. Aquele bombeiro retirado do fundo da lama, antes de cair no fundo daquele abismo e ver sua vida ameaçada, não tinha consciência do significado de sua vida.
Ele só foi perceber que vivia, ele foi só dar valor à sua vida quando quase a perdeu. E agora só quer colher o momento que passa, tudo é lucro para ele.
Além disso, passa pela sua cabeça o quanto é frágil a existência humana, quanto é possível a qualquer instante que por qualquer circunstância sobrevenha a nossa morte.
Por isso então é preciso viver. Celebrar o que resta da vida. É preciso viver com pressa de viver.
Existem os viventes e existem os sobreviventes. Os sobreviventes, como o cantor sem mão e o bombeiro resgatado, têm outra idéia da vida.
Os sobreviventes são os que passaram pelo grande susto, superaram-no com esforço destemido ou com sorte – e são superiores aos outros porque têm idéia nítida do que é a morte.
Por conhecerem a morte ou o grande desfavor, valorizam mais a vida que as pessoas que só tiveram até agora olhos para a vida e muitas vezes não sabem o que fazer dela.
Quem esteve à beira da morte ou já foi impactado pela desgraça, estes imprimem a seus dias um significado de maior conteúdo.
Os sobreviventes são diferenciados, têm consciência de que nada de pior pode vir a lhes ocorrer, eles já foram testados. E estão aprovados para vencer na vida e para enxergar nelas delícias das quais não nos apercebemos.
Uma das experiências mais raras e mais ricas da vida é renascer. Muito pouca gente percebe que não há outra forma de justificar-se na vida senão pela grande façanha pessoal do renascimento.
Uma coisa é aquilo para o que nascemos. Outra bem diferente – e só isso interessa – é o rumo diferente que designamos para nosso destino.
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