quinta-feira, 18 de dezembro de 2008



18 de dezembro de 2008
N° 15823 - PAULO SANT’ANA


A extinção do trema

Confesso que perdi completamente a tranqüilidade quando soube que a partir do próximo dia 1º de janeiro, portanto daqui a 13 dias, a palavra tranqüilo perderá o trema.

Nunca mais a língua portuguesa será a mesma para mim sem trema no tranqüilo. Com o trema, eu me sentia tranqüilo. Eu era seguro.

No caso da palavra qüinqüênio, eu era ainda mais realizado. Porque poucas pessoas sabiam que era uma das poucas palavras que tinham dois tremas. Este era um segredo que sempre guardei a quatro chaves, vaidosamente eu escondia essa minha superioridade sobre a maioria das pessoas.

Mas ainda não perdi essa arrogância no que se refere à palavra qüinquagésimo. Pouquíssimas pessoas sabem que qüinquagésimo tem trema no u. Agora, com a reforma ortográfica, qüinquagésimo vai perder o trema na escrita, mas o trema permanecerá na pronúncia e todos portanto continuarão errando, enquanto eu, impávido, forçarei o surgimento dessa palavra nas frases que pronunciarei nas minhas rodas de conversa, só com a finalidade de esnobar.

Mas o que eu gostei mesmo foi de que a palavra colméia vai perder a partir do próximo mês o seu acento agudo.

Só eu sabia, ninguém mais sabia que a palavra colméia não existia. O certo era colmeia, assim mesmo sem acento, com o “e” fechado.

Mas como estupidamente os dicionários costumam incorporar as palavras escritas ou pronunciadas de modo errado, colméia indevidamente foi reconhecida pelo idioma como também certa.

Ninguém pronunciava ou escrevia colmeia sem acento agudo, todos achavam que era errado, tanto fez sucesso o uso, para mim ilegítimo, de colméia.

E eu ia para a televisão e freqüentemente pronunciava colmeia, sem acento agudo, ou a escrevia assim em minha coluna.

Porque sabia que ao ouvir ou ver a palavra colmeia sem acento, as pessoas iriam correr para o dicionário a fim de flagrar um erro meu. E iriam se quebrar. Era uma forma vaidosa de eu afirmar a minha erudição.

Agora faz-se justiça à palavra colmeia. Pelo menos o acento agudo na escrita a palavra colméia vai perder. É possível assim que as pessoas se acostumem a pronunciar colméia como colmeia, com “e” fechado, corrigindo um equívoco histórico de quase cem anos.

Mas assim como ainda existem raras pessoas que escrevem a palavra qüinqüenal corretamente, com dois tremas, que vão a partir de 1° de janeiro pelo menos na pronúncia colocar os dois tremas, quero dizer que meu tesouro de pronúncia mais bem guardado é outro: refere-se à expressão “em que pese”.

Não existe nenhuma pessoa em todo o território brasileiro nem em Portugal, nem nos outros vários países lusófonos, isto é, que falam português, que pronuncie a expressão “em que pese” corretamente.

Todas essas centenas de milhões de pessoas que eu não conheço e as milhares de pessoas que conheço, entre elas locutores e homens públicos em geral, pronunciam “em que pese” com o “e” aberto, acento agudo no “e” de pese.

E só eu sei, entre esses milhões de pessoas, que “em que pese” quando pronunciado no sentido de “apesar de” é com acento grave no “e” da palavra pese, portanto “e” com pronúncia fechada.

Pronuncia-se assim: em que pêse. Este é o meu grande relicário e privilégio. Porque raríssimas gramáticas trazem o emprego correto da pronúncia dessa expressão.

É meu apurado segredo filológico. Nem o professor Paulo Flávio Ledur, o mestre da língua pátria, sabia que “em que pese” se pronuncia em “que pêse”, o que me deixa muito orgulhoso.

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