sábado, 6 de dezembro de 2008



07 de dezembro de 2008
N° 15812 - VERISSIMO


Diálogo de posteridades

O túmulo do Herbert Spencer fica em frente ao do Karl Marx no cemitério Highgate, em Londres. Spencer morreu em 1903, o que significa que os dois são vizinhos há 105 anos.

Pode-se especular que, vez por outra, cheguem na sacada dos seus respectivos monumentos para uma conversa. – Que tempo, hein Herbert?

– Horrível, Karl. Eu sempre digo que a única vantagem de estar morto na Inglaterra é que nos livramos do clima.

– Não me refiro ao clima, Herbert. Me refiro a esse tempo que estamos vivendo. Ou que os vivos estão vivendo. Essa crise...

– Imaginei que você estaria contente com ela, meu velho. Você sempre disse que o capitalismo ia acabar...

– Mas não assim, não num desastre sem qualquer significado histórico. Causado pela pura ganância, pela simples cupidez humana, por três ou quatro gerentes financeiros pensando apenas em trocar seu Porsche pelo modelo do ano. Há algo menos científico do que a cupidez humana, Herbert? – Bem...

– O que eu tinha previsto era o fim de um processo, a síntese final de uma inevitável progressão dialética que terminaria com o proletariado livre para sempre dos seus grilhões numa sociedade sem classes. Não com a classe média impossibilitada de comprar um microondas. Que consciência revolucionária pode nascer de uma insatisfação com a falta de crédito?

– Pois eu baseei toda uma filosofia na defesa da cupidez humana, como você deve se lembrar, Karl. Nada é mais natural do que a cupidez humana, e a ciência deve reconhecer que as leis da Natureza também regem o comportamento humano. E a primeira lei da Natureza é cada um por si e por suas ambições. É o desejo do microondas, do qual o desejo do Porsche novo é uma exacerbação, que move, metaforicamente, a humanidade.

– Você e o seu darwinismo social. Como é mesmo a sua frase famosa? A sobrevivência dos mais capazes...

– Que hoje todo mundo pensa que é do Darwin, e é minha. Infelizmente, não podemos controlar nossa posteridade do túmulo.

– Mas a sua posteridade está ganhando da minha, Herbert. O capitalismo em crise não comprova a minha teoria, comprova a sua. A fome do mundo não é de igualdade e justiça, é de eletrodomésticos e férias no verão. Não foi a reação que derrotou o comunismo, foi o consumismo. Nunca uma troca tão pequena de letras significou tanto.

– Não se deprecie, homem. Que importa se o capitalismo acabará com uma revolução ou um gemido, se se autodestruirá ou se regenerará? Aconteça o que acontecer, ainda virá mais gente visitar o seu túmulo do que o meu.

Aliás, nenhum dos neoliberais que vinham prestar suas homenagens ao seu filósofo favorito tem aparecido, ultimamente. Como você vê, as flores que deixaram da última vez no meu túmulo estão mais murchas do que os prognósticos econômicos para 2009. Você ainda é o cara.

– Obrigado, Herbert. Mas você não está querendo ver o paradoxo. Se o capitalismo cair por acaso, por nenhum determinismo científico, eu caio junto com ele. Terei sido o pior tipo de profeta, o que acerta porque estava errado.

– O acaso, o acaso... Neste ponto nós sempre concordamos, discordando do Darwin. Ele atribuía a evolução ao acaso. Nós sempre achamos que havia um fim previsível para as nossas respectivas explicações do mundo, que nossas evoluções tinham um objetivo que as redimiria.

– Mas num ponto Darwin teria razão em defender o acaso, Herbert. – Qual? – Foi por puro acaso que enterraram você aí, na minha frente, e podemos ter estas nossas conversas.

– Isso é verdade, Karl.

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