quarta-feira, 31 de dezembro de 2008


MOACYR SCLIAR

O julgamento de 2008

Tendo ouvido a acusação e a defesa, o juiz deveria dar o veredicto. Faltavam poucos minutos para a meia-noite e todos aguardavam ansiosos

COMO ERA de esperar, o julgamento do ano de 2008 realizou-se na noite do dia 31 de dezembro e deveria terminar impreterivelmente à meia-noite. Primeiro falou o advogado de acusação.

"Meritíssimo, como é de seu conhecimento, este tribunal funciona há muitos anos -quase tantos quanto os réus aqui julgados, que não foram poucos. Já tivemos casos sombrios: 1914, que viu o começo da Primeira Guerra; 1929, que deu de presente ao mundo uma tremenda crise.

Mas acho, meritíssimo, que dificilmente algum ano terá se saído pior que este senhor chamado 2008 e que ali está sentado no banco dos réus. É, como deveria se esperar de um ano que termina, um ancião. Mas anciãos merecem nosso respeito. Esse senhor aí, não. Observe, meritíssimo, a cara debochada desse senhor 2008, muito pouco compatível com a dignidade que se espera da idade avançada.

Há mais, porém. Há um depoimento precioso, e este se refere a um ano que está recém-chegando, o jovem e simpático 2009. Como todos sabem, os anos ocupam sempre os mesmos aposentos por um período de 365 dias -às vezes, e como infelizmente foi o caso com esse sinistro 2008, estendendo-se para 366 dias.

Digo "infelizmente" porque essa malfadada coincidência deu ao 2008 um dia a mais para que ele aumentasse os seus estragos. Que não foram poucos. Disse-me, com justificada indignação, o jovem 2009: "Eu nunca imaginei que teria de viver num lugar tão mal cuidado. Vou ter de passar boa parte da minha gestão arrumando as coisas que o 2008 estragou. Só lamento que essa tarefa tenha tocado a mim. Bem que eu queria ser o 2010".

Mas o que fez o sinistro 2008? Começou permitindo que impostos aumentassem, mesmo depois que a CPMF foi rejeitada. Deixou que a destruição ambiental chegasse a níveis incríveis. Trouxe febre amarela, meritíssimo! E dengue! Doenças que já poderiam estar controladas há muito tempo!

Isso sem falar nos escândalos dos dossiês -aliás, até esse estrangeirismo foi ele quem popularizou. Assistiu, deliciado, ao fracasso da Rodada Doha, que tanto prejudicou o Brasil. E trouxe a crise dos grampos. Grampo, coisa que antes só se via em penteados femininos ou grampeadores, de repente estava nas manchetes.

Mais: foi em seu reinado que ocorreram ataques terroristas em Mumbai -coisa que deve ter aplaudido. Isso sem falar no seqüestro do petroleiro -um navio enorme seqüestrado por piratas da Somália, coisa inédita. Por fim, deu um jeito de fazer as Bolsas desabarem, iniciando uma crise que vai ficar na história.

Por tudo isso, meritíssimo, peço a pena máxima para 2008. Que ele seja retirado de todos os calendários, que sua retrospectiva seja apagada e que nunca mais seja mencionado." Respondeu o advogado de defesa: "Meritíssimo, nós acabamos de ouvir o advogado da acusação atacando o meu cliente.

Como é habitual, ele usou todos os artifícios de retórica para atacar um ano já velho, que não tem forças para se defender. A propósito, é interessante que tenha citado palavras do novo ano, o 2009. Claro, meritíssimo: ele quer ficar bem com quem está assumindo. Provavelmente está de olho em alguma boquinha.

Mas será verdade isso que foi dito com tanta veemência? Será que 2008 só fez bagunçar a casa? Acho que não. É suficiente percorrer o seu relatório de gestão, aliás redigido em termos modestos, comedidos. Ele falou em problemas do Brasil. Quero lembrar, meritíssimo, que, logo no começo do ano, uma conceituada agência classificou o Brasil como um país confiável. Há quantos séculos isso não acontecia?

E outras coisas boas ocorreram no Brasil. A lei seca, por exemplo. A acusação talvez não goste disso -o nariz vermelho do meu colega sugere uma certa afinidade com o álcool-, mas a verdade é que o número de acidentes e de mortes nas estradas diminuiu muito.

A acusação citou grampos, mas quero recordar aqui que, graças a um excelente trabalho de investigação, foram presos Marcos Valério e Daniel Dantas -certo, este último foi solto, mas, pelo menos, experimentou o que é a prisão.

O Brasil também proibiu o nepotismo, coisa que parecia embutida no genoma do país. E que me dizem da descoberta do pré-sal? A esta altura já está meio esquecida, porque as pessoas têm memória fraca, mas o petróleo está lá, esperando por nós.

No plano internacional -à exceção da crise mencionada, que talvez não seja marolinha, mas também não é dilúvio bíblico-, as notícias foram boas: Ingrid Betancourt foi solta, a China mostrou que não é um dragão furioso, realizando as Olimpíadas, e Obama foi eleito -caso a acusação queira rotular 2008 como um "ano Bush".

Por último, mas não menos importante, meritíssimo, o São Paulo conquistou o hexa, um feito obviamente glorioso, como o senhor haverá de admitir, a menos que torça pelo Grêmio.

Por tudo isso, peço que 2008 seja absolvido e que ele suba ao pódio para receber o troféu "Ano do Ano"."

Tendo ouvido a acusação e a defesa, o juiz deveria dar o seu veredicto. Faltavam poucos minutos para a meia-noite e todos aguardavam ansiosos.

Mas o magistrado teve uma crise (não é a palavra do momento?) de tosse. Tossiu durante um bom quarto de hora. Quando finalmente conseguiu falar, o prazo para o funcionamento do tribunal tinha se esgotado e ele marcou nova sessão para 31 de dezembro -algum 31 de dezembro, a definir no futuro. E foi correndo para casa, brindar, com a família e os amigos (incluindo os dois advogados, seus convidados) ao novo ano que começava.

MOACYR SCLIAR, 71, médico e escritor, é membro da Academia Brasileira de Letras e colunista da Folha. É autor, entre outras obras, de "O Texto, ou: A Vida".

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