terça-feira, 30 de dezembro de 2008



30 de dezembro de 2008
N° 15834 - Paulo Sant'ana


Os Cohen e o robalo

Havia um desconforto silencioso no cinema na noite em que fui ver Queime Depois de Ler. O filme dos irmãos Cohen começa com o John Malkovich caminhando num corredor da CIA. Malkovich apareceu atarracado.

A cena continuava numa sala em que todos ficam gordos, e o filme seguia adiante assim, com imagens esgarçadas. Tinha minha mulher ao lado para compartilhar meu espanto. Os Cohen enlouqueceram, eu disse. Virgínia me consolou: mas faz tempo.

Percebemos que também as legendas eram gorduchas. Os Cohen estariam interferindo até nas legendas, esses malucos? Esparramou-se na sala a paralisia do estranhamento. Era um defeito na projeção, claro. Ou não?

Quem tomaria a iniciativa de bater os pés no chão, como se fazia nas matinês do Cine Continente, no Alegrete? E se fosse uma sacada do Cohen? Quem pagaria o mico?

Umas cem pessoas quietas, como se confrontassem suas ignorâncias com a genialidade, como acontece quando ficamos diante de fios de tricô dependurados num teto dessas bienais. Os Cohen estavam esgarçando o cinema, e um sentido deveria haver naquilo. Se o mundo ficou plano, o cinema teria ficado esgarçado? Por que teriam escolhido logo uma sala de Porto Alegre para passar a idéia de que a arte deveria ser achatada?

E eis então, uns 10 minutos depois, que a projeção volta ao normal e ouve-se um uhhh no cinema. Que viessem os Cohen. E vieram com tudo. Arapongagem profissional e amadora, logro, blefe, a idiotia da CIA.

A personagem de Frances McDormand repete que alguém precisa tomar uma atitude, como se pedisse para que pusessem ordem no próprio roteiro. Uma secretária eletrônica programada para ouvir falas de clientes de um plano de saúde não consegue decifrar nem o yes de Frances. Um legítimo Cohen sobre a estupidez.

Quando saímos do cinema, vimos o Verissimo e a Lúcia na fila. Pensei em alertá-los para a possibilidade de repetição da tela esgarçada das primeiras cenas. E se cometesse uma gafe? Se o Luis Fernando me diz que aquilo é um truque dos Cohen, o grande truque do cinema em 2008? Me afastei, sempre olhando para os Verissimo, me interrogando se não tinha o dever de avisá-los. Os Cohen nos põem em cada dilema.

Fomos jantar num restaurante do shopping onde fica o cinema. Depois de um Cohen, é preciso distensionar. Os pratos eram individuais. Pedimos dois, um peixe e um ravióli. Decidimos que naquele dia iríamos pagar bem porque merecíamos comer bem. Num prato, apresentou-se um retângulo de robalo pouco maior do que um Chokito. No outro, 15 trouxinhas de ravióli. Nos tensionamos de novo.

O peixe solitário estava envergonhado, sem nenhuma proteção, nu, sem um trevinho de salsa ao menos. As massas, longe uma da outra, pareciam dizer: cada uma no seu quadrado. Cortamos com dó o peixe ao meio, repartimos o ravióli (eu fiquei com oito trouxinhas). O vazio daqueles pratos era tão ameaçador como o vazio de uma bienal, com a desvantagem de que não tínhamos nem o direito à controvérsia pública.

Ou seria uma brincadeira do restaurante com os Cohen? Fomos parar num ambiente temático? Pedi de volta o cardápio para ver se havia um prato à moda Fargo ou algo como encontre-o-ravióli-e-descubra-quem-não-morre-no-filme-dos-Cohen. Nada. Bebi duas cervejas long neck. Corremos o risco de pedir dois cafezinhos. Pagamos R$ 92,40. E sem a salsinha no robalo ou um queijinho ralado no ravióli. Senti pena de nós e do peixe.

Pensamos em alertar o maître: não deixe um robalo tão sozinho nesse período sensível de fim de ano, ou enturme mais os raviólis. Aviso ou não aviso? E se o homem me persegue como o Brad Pitt no filme dos Cohen? Desisti.

Na saída, vimos Verissimo e Lúcia caminhando no estacionamento. Vinham felizes com o cinema esgarçado dos Cohen. Se fossem em direção ao restaurante, iria alertá-los para o robalo.

Passaram reto. Fomos embora confusos como os agentes da CIA do filme, pagos para não entender quem matou, quem morreu e por quê.

Até a CIA faz mais sentido do que a solidão de um robalo. Se a vida não vale nada nos filmes dos Cohen, por que um naco de robalo e uma dúzia de raviólis custam tanto? E tem gente que paga. E ninguém toma uma atitude.

MOISÉS MENDES (interino)

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