sábado, 27 de setembro de 2008



...depois, querida, ganharemos o mundo”

A profética frase de Machado de Assis faz parte de um conjunto inédito de cartas que ÉPOCA revela com exclusividade. Hoje, o maior escritor brasileiro começa a ser reconhecido em todo o mundo
Luis antônio Giron

MATURIDADE?

A fotografia de Machado de Assis por Marc Ferrez tem a data presumida de 1890. Mas o modelo parece ter menos de 50 anos, comparado à imagem das fotos das próximas páginasNos cem anos de sua morte, comemorados nesta segunda-feira, 29 de setembro, Machado de Assis ainda é capaz de provocar surpresas.

Sua extensa obra – nove romances, 200 contos, uma dezena de peças de teatro, cinco coletâneas de poemas e milhares de crônicas – está praticamente canonizada e o torna, indiscutivelmente, o maior escritor do Brasil.

Mas quem é esse gênio? É o austero fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL)? O monstro cerebral pessimista e sarcástico como o descreviam os modernistas? Ou o herói do povo, como defendiam os primeiros socialistas?

Embora os estudos machadianos tenham gerado dezenas de milhares de títulos – Machado é o ramo do conhecimento literário brasileiro mais estudado –, sua vida permanece envolta em mistérios, em especial os anos de juventude.

Como um sujeito pobre e mestiço, numa sociedade ainda escravagista, conseguiu se tornar o mestre da cultura brasileira?

ÉPOCA teve acesso, com exclusividade, a um conjunto de cartas ainda inéditas de Machado, que ajudam a responder a essas perguntas e a desvendar o enigma machadiano. “Pela primeira vez, podemos compreender o fluxo da correspondência de Machado, suas amizades, amores, relação com a política de seu tempo e preocupações filosóficas”, diz o ensaísta e diplomata Sérgio Paulo Rouanet, da ABL.

Rouanet coordena o projeto mais arrojado do centenário de Machado: organizar em ordem cronológica toda a correspondência do escritor, tanto a escrita por ele como a recebida por ele ao longo de 50 anos de vida intelectual.

O primeiro volume do trabalho, Correspondência de Machado de Assis, Tomo I (1860-1869) , sairá em outubro. São 90 cartas. O segundo, previsto para 2009, contém oito centenas de cartas e cobre os 40 anos restantes.

O Machado de Assis que emerge dessas cartas é um personagem novo, distante dos estereótipos que nos habituamos a estudar na escola. Trata-se de um dândi, um jornalista e poeta empolgado com a frenética vida social e boêmia do Rio de Janeiro imperial. Ele sai com atrizes de teatro, conta suas aventuras aos amigos, divide confidências e dá conselhos.

Num sinal de que estava bem à frente de seu tempo, sugere à noiva a leitura de um compêndio feminista. A um amigo distante, filosofa sobre a podridão do comportamento humano e a vida na cidade.

De modo maroto, esquiva-se das ordens dos caciques políticos que chefiam o jornal em que trabalha, o Diário do Rio de Janeiro. Ele é um Machado que, mais que tudo, desce do monumento da academia e vai às ruas, rejuvenescido.

A ÍNTEGRA DAS CARTAS

As duas cartas manuscritas de Machado a Carolina que restaram da correspondência íntima do casal foram reencontradas há um mês no Museu da República, do Rio de Janeiro.

A investigação que descobriu esse novo personagem mundano começou há dois anos, sem outra intenção que ordenar um material desconhecido.

Rouanet convidou as pesquisadoras Irene Moutinho e Silvia Eleuterio para sair à cata de cartas em arquivos e bibliotecas. Logo, as surpresas e os textos inéditos começaram a vir à tona – e esse novo Machado, mais jovem e impetuoso, começou a ganhar corpo.

Uma das principais descobertas feitas por Irene está no texto de uma das duas cartas íntimas que restaram de Machado a Carolina, então sua noiva. Elas foram escritas no mesmo dia, 2 de março de 1869, quando Carolina estava em Petrópolis para tomar conta do irmão, o jornalista e poeta – e amigo de Machado – Faustino Xavier de Novaes (1820-1869).

Faustino sofria de distúrbios mentais e morreria em agosto. “Machadinho”, como Machado assinava sua correspondência a Carolina, estava aflito por reencontrar a amada.

Derramou-se em declarações e elogios a ela, numa letra apressada e nada legível. Perto da conclusão, uma palavra soava estranha a quem se acostumara com uma versão que fora divulgada em 1939, no Catálogo da Exposição do Centenário de Machado de Assis, repetida até hoje.

O trecho da carta que embatucou a pesquisadora dizia: “depois... depois, querida, queimaremos o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.

O convite de Machadinho para a queimada planetária soava esquisito. “Havia algo de errado”, diz Irene. Acostumada com manuscritos, ela foi à caça dos originais, dados como perdidos.

Encontrou o documento no Museu da República, no Rio de Janeiro. As duas cartas foram doadas à instituição pela sobrinha de Machado, Laura Braga da Costa.

Irene fez a cópia das cartas e comparou-as com os textos impressos. “Notei discrepâncias e deduzi, pela análise dos garranchos, que tudo apontava para ‘ganharemos’, e não ‘queimaremos’”, afirma Irene. A carta, corrigida, ganhou um novo sentido.

Machadinho declara premonitoriamente a sua “Carola”: “...depois, querida, ganharemos o mundo”. “A sensação foi de alívio”, diz Rouanet. “Nosso Machado não era incendiário aos 30 anos, nem fez um convite terrorista a Carolina!”

AMOR DEFINITIVO

A portuguesa Carolina (em foto de c. 1890) casou-se com Machado de Assis (acima, aos 25 anos) em 1869. Ela foi trazida do Porto depois de uma suposta desilusão amorosa. Viveram juntos por 35 anos

O desejo de Machado está se cumprindo. Hoje, ele começa a conquistar o mundo. Os simpósios internacionais sobre sua obra, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, atraem a atenção de acadêmicos respeitáveis.

Críticos de alta reputação, como os americanos Harold Bloom e Susan Sontag e o inglês John Gledson, elevaram-no ao patamar dos gênios.

Em seu livro Gênio, de 2003, Bloom define Machado como “um milagre”, por ter conseguido fugir de sua situação social e histórica para criar uma ficção universal. Seus livros foram traduzidos para 14 idiomas, a maior parte na década passada. Há, nos EUA, um entusiasmo por novas traduções.

A glória mundial de Machado será enriquecida pela redescoberta de suas cartas. Elas contêm mistérios que mostram a complexidade da relação amorosa entre Machado e Carolina. Uma das charadas da primeira carta está no terceiro parágrafo.

Ele diz: “Sofreste tanto que até perdeste a consciência do teu império; estás pronta a obedecer; admiras-te de seres obedecida”. Soa cifrado. E as únicas explicações que poderiam elucidar o enigma estariam nas demais cartas íntimas, queimadas após a morte de Machado.

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