sábado, 27 de setembro de 2008



28 de setembro de 2008
N° 15742 - MARTHA MEDEIROS


Longa vida aos famintos

A fome é o flagelo número 1 do mundo.

Todos querem combater a fome na África, na Ásia, no Brasil, em todos os cantos onde possa haver uma criança que não usufrua do direito de se alimentar e crescer. Fome zero. De democratas a ditadores, a intenção é única: erradicá-la. Não há como manter um ser vivo com fome.

Posto isso, passo para o terreno das metáforas, que sempre nos coloca frente a frente com a ambigüidade das situações. Tendo pão e manteiga à mesa, um copo de leite, alguma proteína e vitamina, ainda assim uma criatura bem alimentada pode seguir faminta e isso lhe salvar a vida.

Não há razão para se existir com fome, mas tampouco sem fome. Alguma fome é necessária. É o que nos dá energia para levantar todos os dias.

Você tem fome de quê, perguntava uma letra de rock. De paixão, responde a maioria. Há milhares de casais que se amam e que não compreendem a razão de seguirem insatisfeitos, já que a vida lhes foi tão boa e generosa. Falta-lhes paixão, que é coisa bem diferente de amor.

Paixão mantém a falta de gravidade do corpo, os pés longe do chão, a vida de ponta cabeça, prazer e vertigem, o sim e o não convivendo no mesmo espaço de tempo. Paixão: a causa de tantos desacertos comemorados com champanha, depois das lágrimas.

A raridade de sentir-se vivo como nunca se desejou conscientemente, porque a gente sabe o tamanho da encrenca. Paixão é uma fome hemorrágica: de sangue e coração. Milhares morrem pela carência, e outros tanto vivem justamente por mantê-la como uma gula feroz: é a fome mais gloriosa.

E há a fome de vida, que é ainda mais aguda. Além de incorporar a fome por paixão, inclui a fome contraditória por liberdade, e também a fome por conhecimento, a fome pelo êxtase, a fome de sol.

Uma pessoa que atingiu a saciedade não percebe que jaz embaixo da terra, ainda que mantenha-se como um zumbi caminhando sobre ela. Morre-se de fome, mas também morre-se por não ter fome.

A fome é mais violenta que o desejo. Este está aliado à vontade, é uma intenção que mistura o emocional com o racional, já que a gente deseja com o cérebro também.

A fome, ao contrário, não pensa. Não dialoga, não negocia. É instintiva, febril. A fome é um grito de “eu quero”, “eu preciso”, sem levar em consideração tudo o que está ao redor. A fome nos expulsa da sociedade, nos desloca de toda civilização e nos isenta de todos os pecados.

Voltamos à natureza mais primitiva. A luta por esse tipo de sobrevivência nos redime de qualquer culpa e de qualquer racionalidade.

É uma necessidade vital. Como se fôssemos ursos, leoas, guepardos. Não há lei regendo nossas ações predatórias, de subsistência. Você precisa, você luta, e se tiver sorte, vence.

Olho para os lados e vejo pessoas atracadas em pratos de macarrão, sem fome alguma. Devorando carnes, bolos, doces, sem que a vida lhes pareça igualmente suculenta.

Não vão morrer de fome de comida, mas alguns correm o risco de morrer antes do tempo, saciados pelo seu vazio.

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