sábado, 20 de setembro de 2008



20 de setembro de 2008
N° 15732 - CLÁUDIA LAITANO


Festa da Abobrinha Doce

Uma das coisas que eu mais invejo nas pessoas que vivem intensamente sua paixão pelo futebol é o acesso rápido e imediato a um repertório inesgotável de assuntos de interesse comum.

O professor e o porteiro, o juiz e o taxista, o tímido e o espaçoso, o carola e o devasso, todos ouvem o mesmo programa de rádio que debate à exaustão os problemas no joelho do Ademilson – e o tema, espantosamente, interessa e faz sentido, com a unanimidade do pão quentinho com manteiga.

No mundo da cultura e do entretenimento passa-se mais ou menos o oposto. Junte quatro pessoas aleatoriamente em um elevador, e as chances de que a idéia delas sobre cultura e diversão seja parecida é pequena.

Nem mesmo a novela, que um dia já funcionou como elemento agregador quase tão universal quanto o futebol, resistiu ao processo de segmentação crescente das audiências. Fenômenos de público, e de marketing, são exceções que confirmam a regra, ilhas de popularidade em meio a um oceano de possibilidades.

A oposição entre “highbrow” (cultura de elite) e “low brow” (cultura popular), que data do começo do século passado, há muito não dá mais conta da multiplicidade das manifestações culturais – tanto da parte de quem produz quanto da parte de quem consome.

E como escrever, gravar, filmar – e compartilhar tudo isso – nunca foi tão fácil, qualquer teoria sobre consumo, produção e distribuição de bens culturais é incapaz de prever os próximos cinco ou 10 anos.

E por que é importante pensar sobre isso? Em primeiro lugar, obviamente, porque é melhor pensar do que não.

Em segundo, porque sem uma reflexão séria sobre produção cultural é impossível traçar uma política para a área – e sem uma política cultural definida e com critérios claros não há como garantir que as leis de incentivo serão aplicadas de maneira correta, ou melhor, da maneira que se escolheu achar correta, seja por critérios de mérito cultural reconhecido, popularidade ou originalidade.

Ou seja: o dinheiro dos nossos impostos pode estar indo para onde não deveria – mesmo quando não é roubado.

A crise que envolveu o Conselho de Cultura e a Secretaria de Cultura do Estado nos últimos dias inclui, evidentemente, episódios de má-fé e de desvio de dinheiro. Tudo está lentamente vindo a público e deve ser investigado.

Mas a punição dos larápios e mesmo a eventual devolução do dinheiro usado de forma incorreta não resolve o núcleo do problema: a ausência de uma política cultural consistente, origem do mal-estar que opôs o Conselho de Cultura e a Sedac nos últimos meses.

Na porta da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) batem tanto os organizadores da Festa da Abobrinha Doce quanto o espetáculo de teatro experimental falado em latim. Entre esses dois extremos, cabem definições de cultura que, essencialmente, não são nem certas nem erradas, são apenas parciais.

Para decidir o que merece ou não dinheiro público é preciso que se estabeleçam mecanismos de análise técnicos, que separem os projetos picaretas dos projetos sérios, mas não apenas isso.

A chave desse cofre deveria estar na mão de pessoas que sabem o que estão fazendo, seguindo uma linha de ação coerente a cada opção feita entre a abobrinha doce e o latim, por exemplo.

Esse é o princípio de um Conselho de Cultura independente, que apóie os diferentes governos e garanta continuidade às ações culturais no Estado.

Quando os organismos que deveriam trabalhar juntos não só não conversam como muitas vezes são antagônicos, a ausência de uma política cultural comum e a inabilidade de negociação ficam evidentes, acendendo ainda mais a cobiça dos mal-intencionados – onde vale tudo, todo mundo sente-se no direito de buscar sua fatia no bolo.

O Governo do Estado especializou-se em reclamar da falta de dinheiro, e é muito justo tentar colocar as contas em ordem. Mas, sem uma política cultural, nem as leis de incentivo nem os órgãos de cultura funcionam como deveriam.

E não vão funcionar nunca – nem se descobrirem uma camada de pré-sal no Guaíba.

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