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quarta-feira, 24 de setembro de 2008
Coluna - Carlos Lessa - Valor Econômico - 24/9/2008
Barbas de molho: o Brasil e a crise
O sistema financeiro, entregue à suas próprias forças, tende a construir complexas estruturas de relações de débito-crédito e transmutações alquímicas de ativos e passivos encadeados.
Estas "estruturas" fazem sua delícia durante a construção; sua montagem é sempre acompanhada ideologicamente com a exaltação das forças de mercado e antevisão de um contínuo progresso.
Durante algum tempo, ajudam a "economia real" (a das forças produtivas). Porém, em suas sucessivas superposições, o "palácio de cartas" se fragiliza e, ao se desmontar, desorganiza a base produtiva.
O sistema financeiro americano construiu um imenso edifício de múltiplos andares financeiros a partir dos imóveis considerados riqueza e do direito imperial de emitir a moeda do mundo capitalista.
A atual crise - uma desarrumação e o encolhimento do "castelo de cartas" - poderá dar início a uma longa fase de lento crescimento da economia mundial, precedida de uma recessão com duração imprevisível.
Nas praias de um país tupiniquim, criamos uma caricatura de bolha. O "castelo de cartas" americano tinha seus alicerces nas hipotecas imobiliárias que subiam de preço em função da especulação financeira.
A bolha brasileira reside no endividamento familiar acelerado, com prazos estendidos e juros ultra-elevados. O brasileiro pode comprar um automóvel sem entrada e pagá-lo em até 90 prestações.
Veículos, eletrodomésticos e móveis são itens frágeis para hipoteca; no caso do veículo, o devedor sabe que já perdeu 20% do valor ao retirá-lo da agência.
A bolha de crédito brasileira está baseada na manutenção dos empregos e nas melhorias da renda familiar. A vantagem do banco brasileiro é o desconto em folha do crédito consignado.
A crise americana já se introjetou no Brasil pela tendência à queda do preço de nossos produtos primários de exportação, pelas saídas de capital especulativo, que desfrutava o diferencial de juros devido ao encurtamento do crédito no exterior, e pela depreciação do real, que nosso Banco Central tenta conter vendendo dólares de nossas reservas. Estas são as dimensões já percebidas.
Provavelmente, empresas brasileiras que foram para o exterior estarão submetidas a racionamento de crédito; linhas de financiamento à exportação e importação deverão ser temporariamente "apagadas"; nossa Bolsa de Valores oscilará com tendência a refluxos.
É previsível um balanço comercial piorado e uma timidez progressiva de nossas empresas, que dificilmente manterão ou implementarão seus projetos de expansão.
Se nosso Banco Central, para atrair do exterior e/ou desestimular saídas do Brasil, atuar elevando a taxa de juros, é natural que nossas empresas coloquem as barbas de molho.
Desnecessário chamar a atenção sobre o efeito perverso em termos de emprego e melhorias salariais.
Estariam minados os alicerces de nosso edifício de crédito, que funcionou no último biênio como a principal fonte de ampliação de mercado interno. O PAC enfrentará, neste clima, prováveis procrastinações.
Já há alguns meses, o Fed e os bancos centrais europeus e do Japão vêm injetando recursos.
Nas últimas semanas, o Estado americano vem "estatizando" os prejuízos do sistema financeiro; assumiu os dois principais fundos imobiliários, converteu-se no controlador da principal seguradora e assistiu aos tremores que abalam seus gigantescos bancos de investimentos.
Na semana passada, anunciou um pacote de US$ 700 bilhões para "adquirir" os papéis podres do castelo de cartas.
Não sei julgar se esta injeção é suficiente; pode ser que seja um "cobertor curto" e não abafe o incêndio das cartas, porém é inquestionável que terá um impacto positivo nos próximos exercícios fiscais americanos.
Li que o UBS, o maior banco suíço, teve perdas de mais de US$ 40 bilhões com a implosão da bolha financeira americana.
Todos os gigantes bancários têm relações cruzadas com os bancos americanos, muitos operam pesadamente no interior dos Estados Unidos.
O Tesouro americano já avisou que vai estender sua absorção de papéis podres destes bancos estrangeiros e que espera uma "atitude semelhante" de outros governos. O discurso do risco sistêmico pode propor englobar a periferia mundial.
O Império tem recursos de poder para impor suas regras: são os títulos de dívida americanos que formam as principais reservas dos demais bancos centrais do mundo.
Obviamente, haverá uma nova gigantesca emissão de títulos do Tesouro. Quem irá adquiri-los?
A tendência dos impérios, quando surgem suas crises, é transferir o máximo de ônus para a periferia. Sem dúvida nenhuma, esta crise encontra o Brasil melhor preparado.
Os US$ 208 bilhões de nossas reservas foram formados com suor e lágrimas e representam a "garantia" que o Brasil dispõe.
Não sei qual é o tamanho do "capital cigano" que migrou para o Brasil atraído pelo trinômio operado pelo Dr. Meirelles: juros reais hiperelevados, ausência de tributação e direito de retirada.
Quanto maior for essa percentagem, mais significativa será a pressão sobre as reservas.
O Banco Central terá que escolher entre uma desvalorização do real com forte incidência inflacionária ou a redução das reservas para manter a taxa de câmbio.
Talvez, por cacoete, fidelidade ideológica ao neoliberalismo e preocupação com a lucratividade dos bancos brasileiros, venha a elevar a taxa de juros. Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. O Brasil tem que botar suas barbas de molho.
Carlos Lessa é professor-titular de economia brasileira da UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras.
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