sexta-feira, 26 de setembro de 2008


Artigo - Marisa Dreys - O Globo - 26/9/2008

Os 'outros' somos nós

A banalização com que têm sido encarados os acidentes de trânsito permeia o discurso do senso comum. Expressões como "foi só uma falta de atenção" ou "acidente sem gravidade" aparecem constantemente nos relatos dos envolvidos.

Muito difícil perceber nos motoristas a preocupação em refletir sobre as causas de um acidente. Ou melhor, na maioria das vezes, já chegam com um culpado de plantão: o "outro".

Entre os policiais, costumamos dizer que esse "outro", se existisse, já estaria respondendo a um sem-número de processos e pobre-de-marré de tanto pagar indenizações. Mas, quem será esse "outro"?

O "outro" é sempre aquele que exime o motorista da culpa pelo acidente. Pode ser um "carro que me fechou", "um carro que parou de repente e eu desviei" ou mesmo o próprio trânsito em si.

O "outro", nos casos mais revoltantes, pode ser a própria vítima, que, segundo os relatos, "me fechou e eu bati", "atravessou na minha frente e eu atropelei", entre outras possibilidades. O outro é sempre alguém que não sou "eu".

É na frieza dos números de acidentes e vítimas no trânsito que estão esses "outros". São as vítimas da imprudência, da imperícia e da negligência dos milhares de "eus" que dirigem sem responsabilidade.

Que bebem "um pouco" e se acham capazes de dirigir, colocando a vida dos outros em risco; que não respeitam sinais de trânsito; que excedem a velocidade; que ignoram que cada "outro" tem um rosto, uma família e uma história triste para deixar.

Muitos motoristas ainda não perceberam que a distância entre ser o "outro" ou ser o "eu" é apenas circunstancial. A luta por um trânsito mais organizado e pelo direito de ir e vir com segurança passa pela conscientização de que os "outros" somos "nós" e de que o rosto e a história envolvidos nos acidentes também são nosso rosto e nossa história.

Como policial, considero-me parte dessa cadeia de acontecimentos.

Difícil missão dar a notícia do falecimento de um ente querido a seus familiares: ouvir o pai, a mãe, o filho ou o marido, daquele já mencionado "outro", até então sem identidade, chorar desesperadamente ao telefone. A sensação é um misto de impotência, culpa e solidariedade humana que nos dá vontade de chorar junto com eles.

E seguramos essa vontade de chorar porque é preciso ajudar a família e tomar providências burocráticas que, se por um lado são necessárias, não trarão de volta a vida de quem se foi à custa da imprudência alheia.

E, depois que tudo termina, o plantão continua com outras ocorrências.

Na minha cabeça, porém, permanecem os rostos de olhos tristes e molhados de cada uma daquelas pessoas, como gritos silenciosos de socorro, como dores que poderiam ter sido evitadas, como vidas que poderiam ter sido preservadas.

MARISA DREYS é inspetora da Polícia Rodoviária Federal.

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